Livros raros os como esta «Teia dos labirintos» de Mirian de Carvalho (São Paulo, Escrituras, 2004), volume, obra escrita em versos, sim, sim, que não se trata de um grupo de poemas, seja, conjunto de poemas reunidos em livro, com um título para os agrupar; mas é um só poema quase, um poema só, um trabalho de articulações poemáticas e temáticas estrutura os vários poemas, costurados, entretecidos, de forma que o que lhe dá a característica de livro não é só o título, mas o conjunto conexo, a urdidura unitária do construído bloco, um elemento só, livro que é labirinto significativo mas e onde se entrança o leitor e ali penetra, como numa livre pesquisa e sonhada, fechada no seu tema polissêmico,  com começo, meio e fim.

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A «Teia dos labirintos» é construída em blocos: fio de Eros, nas malhas da lenda, urdidura simbólica, liame de ascensão, laços notívagos, e tecedura das coisas.
Cerzido em ciclos o vocabulário do primeiro bloco aparece, costurado, talhado, nervorisado, no visgo da aranha textual, em tecido, o tear, rendas e novelos. Pelos e gozo. Laços e afetos na fímbria da bainha do tecido de um «laborioso tear, mostra-se à flor da pele / em urdidura de flores de fios». De sombra e luzes são tranças, desejos, cabelos, visceral trabalho de uma fiandeira-mãe, faminta de espera, de esperma, no tremular de fieiras de grinaldas em gemidos da sua trama, em seda do «amoroso lavor / de pontos de trespasse», como poesia costureira.

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Do segundo bloco o vocabulário vem do «Livro de Jó», do passado, da origem e de outras tradições, como a do islamismo, do hinduismo, budismo, bramanismo, helenismo, e mais, e os deuses olímpicos, de África, da Micronésia, configurando uma polimorfologia, uma múltipla cosmologia temática.

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Depois vem aquela urdidura simbólica, e armadilha, onde orifícios e linhas, num jogo de fiandeira e numa galáxia de tramas, ungindo luas, luzes e amores, se enfiam nos fios de ouro dessa visão de sublime e no final de fugas de um aranhal de luares, e redes de encontros (e desencontros), impulsos, raízes, insetos e vazios, «destilando a seda», «em imaginária agulha».

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Há agora algo que sobe, o vazado, a costura, o tecido, o telhado, as vidraças, os pássaros, asas, calhas, naquelas arquiteturas «às barbas do sol», onde o tempo se derrama, se proclama, em laçadas e filigranas. Toda a poesia é e está no vocabulário (afinal, a poesia está no dicionário), que traça desenhos e galhardetes entrecruzados rendilhados bordados laços de vida e de morte rios de linha floresta de telas cavernas de luz e lua.

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«Laços notívagos» desce aos pântanos, às redes de ferro do fundo da noite do mar, da memória subterrânea, dos presságios dos becos da terra prenha das sombras incertas dos buracos negros onde estão os fantasmas e aquelas águas verdes das algas das vozes antigas e mortas.

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E assim se fez «a tessitura das coisas» adormecidas, vindouras, fiapos do vazio de oriente na trilhas de desertos exilados arcaicos onde as escamas prove a fome dos desígnios dos homens, e os morcegos expandem suas cavernas de nanquim, lá recolhendo o fôlego e a força dos homens...

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Mas o belo livro termina com uma prece de São Francisco que diz:

Ao cair da tarde, na voz das aves
minha Oração de São Francisco.