Meus sapateiros

[Chagas Botelho] 

Outro dia sonhei com o seu Cícero que, carinhosamente, lhe chamava de Dom Cícero. E a alcunha pegou. Ele era meu vizinho e sapateiro quando eu morava no Dirceu. No sonho, Dom Cícero lustrava meus sapatos pretos comprados na Riachuelo, melhor do que o habitual. Perguntei-lhe o porquê do capricho, e ele então, sereno, dizia: “cortesia da casa”. Acordei feliz com sua gentileza.

Dom Cícero sempre foi gentil comigo. Era um homem simples com alma devota. Na sapataria, além de lustrar e consertar meus pisantes, ele lia trechos da bíblia para mim. Lia e interpretava o Evangelho do dia. Lembro-me bem: à missa, Dom Cícero, só ía de forma impecável. Alinhadissimo. Afirmava que Deus merece o melhor de nós. De fato, faleceu dando o melhor de si ao criador. Hoje, com certeza, mora ao lado do Pai. 

Ao atravessar o rio Poti, sem a barca do sal,  para residir na Piçarra, tive que procurar outro sapateiro. Encontrei o seu Zé. Sorte a minha. Seu Zé tem um bigode imponente. Não ler a bíblia. Nem me conta lembranças de sua meninice como me contava o Dom Cícero. Porém, é um senhor profissional. Lustra e restaura um sapato como ninguém. Mencionei esses dois talentos, um já falecido e outro vivo, porque neste 25 de outubro comemora-se o dia do sapateiro. E, convenhamos, um sapateiro raiz e de imensurável quilate, está ficando raro.

Não era para ser assim. De algum modo, o ofício destes homens fora de série, está muito presente em nosso dia-a-dia - em nossas vidas. Já pensou carregar o fardo da existência sem um sapateiro? Jesus de Nazaré que nos guarde, não é não? “Os sapateiros", diria Machado de Assis, “não fariam mais sapatos, se acreditassem que todos iam nascer com pernas de pau”. Certo está o brilhante Bruxo do Cosme Velho.