LITERATURA É PRA RICOS? (Republicado com alguns acréscimos ao texto)

CUNHA E SILVA FILHO

Eu queria saber se pobre, analfabeto e negro se dariam bem e teria sucesso e continuidade produtiva visível com o mundo literário moderno ou pós-moderno. Aqui faço exceção a clássicos autores históricos brasileiros dos quais alguns chegaram ao estrelato, até no exterior, nos países ditos civilizados, como Machado de Assis (1839-1908), José do Patrocínio (1853-1905), Cruz e Souza (1861-1898) Lima Barreto (1881-1922) e, entre poucos outros, Carolina Maria de Jesus que, apesar de favelada, e com todas as limitações de formação intelectual, se tornou conhecida com o seu livro de estreia Quarto de despejo: diário de uma favelada.(1960). Até críticos de peso e escritores de renome, inclusive críticos, lhe atribuíram valor estético. não deixaram de lhe reconhecer o valor de sua obra. Manuel Bandeira (1886-1968), nosso maior poeta lírico do Modernismo, saiu em sua defesa quando erroneamente afirmaram  de que ela fosse uma obra escrita por alguém com objetivos de angariar publicidade pelos temas ventilados nos seus diários de favelada. Já se vê que o elitismo ou preconceito racial, na esfera literária, vem de longe.

No entanto, a situação dessa escritora de origem muito humilde se deveu por razões de puro talento de uma autora que, em linguagem simples, direita, sem os atavios e os requintes do que se costuma chamar de alta literatura, mas escrita em nível estético inegavelmente literário, conseguiu relativo reconhecimento público. Entretanto, ainda há muito por fazer no que tange a autoras negras brasileiras tanto do passado quanto contemporâneas. O mesmo resgate valeria também para os autores negros m do passado ou do presente.

No que diz respeito ao aspecto cental deste artigo, estou pensando num poeta presunçoso que, proferindo uma conferência, num seminário de literatura numa universidade sobre poesia e permitindo que a audiência pudesse lhe fazer perguntas, respondeu à minha indagação: “Poesia é elitista?” Ao que me respondeu: “Sim, é e tem que ser elitista”. Estranhei a resposta do dito cujo. Mas me deixei abalar, até hoje, profundamente com a sua resposta.

Essa pergunta também também lhes faço agora, leitor. O que me dirá? Tenho ou não razão de romoer a pergunta de tantos anos martelando na cabeça já cansada e nos olhos igualmente cansados das leituras já feita há tantos anos. Antonio Candido (1918-2017), em ensaio célebre sobre o direito à literatura já pensou profundamente sobre essa questão e concluiu que só pela educação a problemática (com solucionática ?) seria amenizada e teria alguns frutos.

Aqueles escritores citados acima não teriam a sorte que tiveram de se tornarem conhecidos e respeitados pelos seus pares. O meio literário, além de duro como um rocha, como também injusto e excludente, por vezes escolhe um livro de uma autor ou autora de origem humilde não tanto pelo valor lidimamente literário da obra em si, mas principalmente porque, no tempo em que foi descoberta, eles, os detentores do “Aceito” ou “Não aceito” previam que daria certo publicamente a sua edição por novidade de tema explorado, ou por saber de antemão que o mercado editorial lhes seria benéfico financeiramente pela surpresa de um escritor completamente desconhecido e pela questão crucial de ser infelizmente pobre.

Alguns editores criam ícones por razões inconfessáveis e ao mesmo tempo derrubam ícones por razões diversas. Para eles m o que importa é a vendagem, fato imediato o lucro certo e líquido. Bons autores que vão procurar bater em outras portas ou paguem em qualquer editoram por suas produções, boas ou ruins.

Não é só no campo da literatura que esse fenômeno midiático ocorre, posto que o número dos afortunados que cai no gosto do “nihil obstat” do que seja bom ou ruim sobretudo no universo literário, depende do poder discricionário do que deve ou não ser publicado e ascendido às culminâncias de uma obra de peso, de valor, para eles, mercantilista. E o lucro é o que efetivamente mais conta nesse jogo de espelhos invertidos. É aqui igualmente que a obra se insere no circuito literário.

Machado, de origem humilde, deve ter passado por maus bocados por ser mulato, e assim como Lima Barreto, por ser igualmente mulato e por exalar suor e cheiro de bebida alcóolica. A biografia de ambos, por exemplo, evidencia esse lado de amargura explícita, como em Lima e implícita, como em Machado. Ambos foram exemplos de obstinação, seja pelo brilho da inteligência, seja pela força poderosa do legado literário de cada um deles.

No primeiro, houve mobilidade crescente, no segundo houve aceitação constrangida e refreada pelo real valor estético da obra deixada, sedo que também sofrera, da parte da crítica castiça e gramatical, a pecha de escritor “negligente” com a língua, quando se sabe que, no tocante à questão do estilo, Lima nada tinha de relaxado no vernáculo.

Seus indevidamente considerados erros de uso da língua portuguesa deliberadamente se situavam numa nova forma de dar expressão de usos da linguagem literária, fugindo do academicismo, do normativismo, das incoerências entre a fala de uma personagem popular e o discurso hegemônico de um narrador antiquado e purista já definido em tempos atuais, como um narrador ou um personagem, definido como “texto sequestrador”(Donald Schüller) da linguagem dos dominados (“texto sequetrado”(Donald Schüller), como era a prática na ficção brasileira até ao período literário denominado Parnasianismo.

Muito pelo contrário. Lima Barreto á nascera precursor do que ia surgindo, com o discurso narrativo no horizonte da literatura brasileira com o advento do Pré-Modernismo, para ser simplesmente didático.

Ele apenas se insurgiu estilisticamente aos padrões classicizantes, do Parnasianismo à Coelho Neto, à Rui Barbosa (1849-1923) já datado, razão pela qual só foi mais bem entendido posteriormente pela críticos que o estudaram através de novas óticas de abordagens do texto literário. Sua marca de literariedade, seus temas, seus personagens, sua visão crítica contundente contra o ambiente político-social de sua época já o definiam como um escritor avançado para os seus contemporâneos. Os progressistas, no campo da estética, em geral, são suscetíveis de estranhamento, de interpretações erradas e cediças.

O elitismo editorial é semelhante à mobilidade social. Alguns happy few são por ele acolhidos outros caem no anonimato definitivo. E é assim que se forma o circuito literário. O Brasil tem a péssima mania de títulos nobiliárquicos, de “brasões enfatuados da nossa sociedade” (expressão uma vez empregada, numa missiva, pelo meu ilustre pai) preconceituosa e hipócrita, cheia de vã sabedoria e pernóstica, valorizando só bens postos do colunismo social e literário e desprezando os não incensadores de gloríolas efêmeras.

Assim como existe o elitismo editorial, há, da mesma forma, o elitismo da vida literária, do colunismo borbulhante dos oportunistas dos pseudo-valores, tão bem descritos num livro pouco lido, que é No hospital das letras (1963), de Afrânio Coutinho (2011-2000). Outro nicho, com as devidas exceções de praxe, são os redutos da universidade públicas as das afamadas particulares. Quem não forma grupelhos nesses recintos, não tem vez nem voz.

Só a muito custo beneficiam alguns denodados afoitos que, por serem franco-atiradores, ali tentam penetrar, contudo, mesmo assim, com uma batalha destemida e, ao final e cabo, decepcionante, rumo à desilusão, visto que os óbices, os inimigos cordiais, são enormes e implacáveis, pois nesses feudos, convivem, em competição silenciosa e corrosiva à procura insana do estrelismo dominante e malsão.

Outros feudos se incrustam nas chamadas academias de letras espalhadas pelos quatro cantos do país, onde medram, com as poucas exceções de sempre, os medíocres praticantes de felonias literárias e sabe Deus como conseguiram se eleger para esses “seletos” sodalícios improdutivos.

Está faltando um ersatz de um autor do livro Zeros à esquerda (1947), do demolidor de medíocreS, que foi Agripino Grieco (1888-1973), O livro nem sei se ainda é lido por alguma admirador de sebos.

Suponho que o cerne desta crônica, quero deixar bem claro, não se dirige aos profissionais das letras que agregaram valores e aprimoramento à produção literária e cultural brasileira. O sentido desta crônica se dirige ao bas-fond supostamente elitista, que se coloca acima do bem e do mal e ditam ordens mercantilistas àqueles atores que não são incensados por um número de leitores, senhores todo-poderosos do que erve aos seus altos projetos literários de viés mercantilista e ideológicos.

Este espaço do editorialismo serve e é servido por cumplicidades tácitas e por razões jamais devidamente esclarecidas, porquanto são decisões gestadas e tomadas nos subterrâneos da vida editorial nacional. Esse meu pensamento vai ao encontro do que Monteiro Lobato (1882-1948) pensava da vida literária brasileira. Nem queira sabe, leitor, do que o autor de Urupês (19180) pensava dA vida literária e de alguns autores em terras tupiniquins.

Não se pense que um autor da noite pro dia, tendo virado celebridade, possa, ao longo de sua vida futura ser continuamente incensado. São estrelas cadentes que logo logo serão sepultadas e cairão no limbo, onde jazem figuras muito mais grandiosas em qualidade de produção literária. E isso acontece nos vários gêneros literários, desde os ensaísticos até os gêneros mais em evidência diante do público volúvel e insaciável de novidades: contos, romances, novelas, peças teatrais, poesia, memórias, etc.

Vivemos a era do descartável, do efêmero, da banalização de tudo, até da morte, do imediato esquecido, da descontinuidade e do apagamento. Nos tornamos seres destinados ao anonimato, ao olvido. A palavra mágica ou melhor, o abracadraba, como diria um excelente ensaísta, em livro de viagem à Europa, Cassiano Nunes (1921-2007), outro esquecido, é “personalidade”, e esta, da mesma maneira, se acha hoje relegada ao descarte, em favor do individualismo grosseiro, malfazejo e ególatra das sociedades super-afluentes e indiferenciadas nos erros e defeitos que se tornaram moeda corrente da contemporaneidade