INGÊNUAS COBIÇAS DE RUBIÃO - GLÓRIA E COLAPSO EM QUINCAS BORBA
Em: 18/05/2008, às 16H32

Francigelda Ribeiro
Neste artigo, propõe-se uma análise do romance Quincas Borba de Machado de Assis, com ênfase em três aspectos da trajetória de Rubião – uma das personagens centrais do enredo: 1)Ritual de passagem, 2) O grand monde e 3) O colapso. Essas etapas remetem, respectivamente, ao processo de ascensão, permanência e declínio de Rubião no seio de uma elite social que valoriza a acumulação de bens em detrimento da ética e da moral humana.
Em uma escritura visceral, Machado compõe um universo de alegorias do qual emergem as três principais personagens da narrativa: Rubião, Palha e Sofia. Rubião se tornou o herdeiro universal do filósofo Quincas Borba. Irmão da noiva de Quincas, falecida antes do casamento, tornou-se seu ente mais próximo, ao abdicar do trabalho como professor, passando a dedicar-se, exclusivamente, aos cuidados para com a saúde de Quincas. Aberto o testamento, após a morte do filósofo, Rubião estava nomeado como seu herdeiro universal, todavia a posse dos bens só se faria sob a condição de o herdeiro ficar com a guarda do cachorro de estimação do filósofo que tinha o mesmo nome do dono, Quincas Borba.
A caminho do Rio de Janeiro, cidade onde decidiu morar na condição de novo rico, a personagem Rubião conheceu Palha e Sofia. O casal entrou no trem, na estação da cidade de Vassouras, encontrando lugar defronte ao assento de Rubião. Os olhares, o semblante plácido de Palha e o incontido desejo de Rubião de tornar pública a herança que recebeu do filósofo, fizeram romper o silêncio entre eles. Fluíram as primeiras palavras sobre o progresso das estradas, da Corte, enfim sobre o progresso de Rubião, que discorreu sobre o testamento, com orgulho. A transparência das palavras denunciou sua ingenuidade de provinciano inexperiente – aspecto que já prenuncia a formação do campo cêntrico do enredo, onde serão contrapostos os ideais dos que adotam a lógica liberal da concorrência, herdada das sociedades européias desenvolvidas e a frágil postura dos que não aprenderam a lidar com essa mentalidade. Como, no caso, o exemplo de Rubião que, embora tivesse se tornado um membro da elite, foi vitimado pela avidez desse sistema, retornando a Barbacena louco e em lastimáveis condições de pobreza.
A presente análise, baseando-se na tensão gerada a partir do relacionamento entre Rubião e os membros da elite carioca com quem passou a conviver, volta-se para o embate ocasionado pelo desejo de ascensão social e econômica por parte dessa elite cosmopolita, aspecto que se constitui como base da urdidura textual no romance apresentado. A expressão campo de batalha, que enfatiza a oposição entre vencedores e vencidos, remete à luta pelo poder, está sendo, aqui, adotada por se relacionar com as opções semânticas do próprio romance, sobretudo no que tange à alegoria das tribos, fulcro do enredo, exposta pelo filósofo Quincas Borba: um combate entre duas tribos por uma plantação de batatas que só daria para alimentar apenas uma delas. No caso, a paz traria a destruição de ambas e a guerra, a conservação de uma delas. É desse conflito, no qual venceu a mais forte, que advém a máxima: "ao vencedor, as batatas" - expressão que a personagem Rubião, se não a entendeu quando Quincas Borba lhe explicara sua filosofia, o Humanitismo, clamava-a em alta voz após a abertura do testamento.
1. Ritual de passagem
O primeiro marco da trajetória de Rubião inicia-se do momento em que o testamento é aberto até a sua imiscuição nos salões da Corte, ocasião em que o narrador demarca sua transição de personagem pobre ao grand monde dos capitalistas especuladores.
Percebendo que sua vida seria outra a partir de então, já não mais se julgava um indivíduo comum; estando rico e poderoso, deveria ser duro e implacável para com as pessoas à sua volta, a fim de que elas percebessem o poder que, doravante, detinha. O trânsito de uma classe social a outra, ao passo que lhe enaltecia o ego, aguçava-lhe a imaginação.
Era tempo de acabar com as raízes pobres e secas, que apenas enganavam o estômago, triste comida de longos anos; agora o farto, o sólido, o perpétuo, comer até morrer, e morrer em colchas de seda, que é melhor que trapos. E voltava à afirmação de ser duro e implacável, e à fórmula da alegoria. Chegou a compor de cabeça um sinete para seu uso, com este lema: AO VENCEDOR AS BATATAS (ASSIS, 1994, p.37).
Eis o levante impetuoso da personagem que já se sentia um inexorável capitalista. Havia no testamento a cláusula da guarda do cão, só poderia tomar posse dos bens se cuidasse do cão, que levava o mesmo nome do filósofo, Quincas Borba, entretanto ele estava certo de que ficaria rico sim, “ainda que o céu viesse a baixo”(ASSIS, op. cit., p.34), pensou ele. Depois emendou que tudo daria certo, mas com a ajuda de Deus, arrependendo-se da audácia do pensamento anterior. Quantos o insultaram ao chamá-lo de “sentinela de cachorro”, mas agora viam o resultado, o amigo Quincas não o esqueceu no testamento. Rubião esteve ao seu lado ao longo de toda a enfermidade como bom amigo; mas sem descartar a possibilidade de algum legado. Tornar-se herdeiro universal, no entanto, superava sua expectativa de receber dez ou apenas cinco contos como retribuição pelos cuidados dispensados.
A personagem Rubião mandou que uma missa fosse rezada pela alma do finado, embora soubesse que o testador não era dado à religião alguma, todavia era uma oportunidade de desdenhar daqueles que o insultaram. Ele passava a pertencer a uma nova classe social, portanto queria sentir, efetivamente, a glória da transição. “Se algumas pessoas deixaram de comparecer, para não assistir à glória do Rubião, muitas outras foram, – e não da ralé, – as quais viram a compunção verdadeira do antigo mestre de meninos”(ASSIS, op. cit., p.38).
Na capital, a conclusão do inventário coroou todos os anos em que se dedicara ao filósofo. Dado o sucesso dos trâmites legais, a comemoração ocorreu com um jantar concedido por Cristiano Palha, que se dispusera a ajudá-lo em tudo quanto fosse preciso, desde que desceram do trem. Na ocasião do inventário, Palha já se achava mais íntimo do novo rico, inclusive foi sua a indicação do advogado que garantiu o desfecho bem-sucedido da causa.
Rubião até hesitou em aceitar o convite de Palha para tal jantar, por ter vexame com as senhoras, mas tomou a promessa que fizera a si próprio de ser forte e implacável, e encorajando-se, rumou à Santa Teresa, onde morava Palha com sua esposa Sofia. Conforme o enredo, no jantar, um sentimento de plenitude irradiava todo o semblante de Rubião diante dos novos amigos que se mostravam solícitos e afetuosos, foram-lhe apresentados por Palha, naquela comemoração que marcava o seu ritual de passagem para o mundo dos capitalistas.
O narrador, nessa ocasião, demonstra com detalhes e com acentuado sadismo o jogo de interesse mantenedor das regras que regiam as relações sociais na classe burguesa, que acolhia Rubião. A esse propósito, Alfredo Bosi escreve no seu livro História concisa da literatura brasileira:
Em longos ziguezagues se vão delineando o destino do pobre Rubião e a vileza bem composta do mundo onde triunfam Sofia e o marido; e não sei de quadro mais fino da sociedade burguesa do Segundo Reinado de que este, composto a modo de um mosaico de atitudes e frases do dia-a-dia. Desse mundo é expulso com metódica dureza o louco, o pobre, o diferente (BOSI, 1999, p.181).
De posse dos bens, seguiu a mudança de Rubião para uma casa em Botafogo. Além da casa nova, vieram novos costumes, Rubião passou a freqüentar os nobres salões, recepções, o teatro, enfim locais adequados à sua nova posição social, tudo com o auxílio do casal que o rodeava de favores. Para Rubião, Palha e Sofia eram, de fato, um grande presente do acaso, principalmente a mulher, que tinha “os mais belos olhos do mundo”(ASSIS, op. cit., p.42).
A personagem Rubião se sentia benquisto por todos e deslumbrava, com felicidade, o seu novo status social. “Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha [...], para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade”(ASSIS, op. cit., p.20).
Todavia nada lhe era mais sedutor do que a bela Sofia, a quem Rubião mais desejava submeter a essa sensação de propriedade. Não conseguia afastar de si a imagem da esposa do amigo, um sentimento de culpa chegou a abater seus pensamentos, contudo eram tantas as gentilezas da senhora, que principiou em Rubião a suspeita de que ela o amava, “não era velho; ia fazer quarenta e um anos”(ASSIS, op. cit., p.20), portanto julgava que era possível que Sofia tivesse por ele um sentimento mais profundo. Desde a estrada de ferro, ele se encantou, sobretudo, com os olhos dela, conquanto gostasse mais dos ombros, que pareciam feitos de cera, cujo encanto só pôde deslumbrar, posteriormente, em um baile. Os olhos, o par de olhos exuberantes pareciam “repetir a exortação do profeta: Todos vós que tendes sede, vinde às águas”(ASSIS, op. cit., p.21).
No entanto, o narrador esclarece que se ela possuía olhos convidativos eram tão somente convidativos, como janelas abertas, porque a porta, “se assim podemos chamar ao coração, essa estava trancada e retrancada”(ASSIS, op. cit., p.53). A personagem Rubião, por seu turno, descuidava-se das interdições aos seus sentimentos e mergulhava na paixão guiado tão somente pelo encanto dos olhos de Sofia que eram como uma fonte a saciar sua carência de homem solitário.
Desde então, iniciou-se um processo de negligência em relação à sua postura, enquanto capitalista. Adotou comportamentos que denunciavam seu despreparo no universo daquela sociedade. Mal chegado ao campo de batalha, já se perdia diante do encanto da amada, atitude que ofuscava sua visão do real funcionamento daquele grupo social, bem como escamoteava a hostilidade do meio.
2. O grand monde
Esse encanto, ou mais sinestesicamente, esse canto de sereia que seduzia a personagem Rubião marca a transição ao segundo momento da configuração de análise, aqui, percorrida. Tendo início com o capítulo 28, essa etapa segue até o capítulo 144. Competia a Rubião uma posição estratégica como membro da elite, uma vez que era visado pela fortuna que possuía: “casas na corte, uma em Barbacena, escravos, apólices, ações do Banco do Brasil e de outras instituições, jóias, dinheiro amoedado, livros”(ASSIS, op. cit., p.33). Não obstante, seus hábitos demonstravam total inexperiência diante do comando da própria riqueza.
A ingenuidade e generosidade remetiam Rubião a composturas inadequadas ao meio, facilitando investidas adversas, como os empréstimos de valores quase nunca restituídos. Destarte, Rubião desatendia à moral burguesa, conforme predica Raymundo Faoro em seu livro Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio:
Entrega-se à ociosidade, não mais a elegante ociosidade, mas a reles, vítima da exploração dos amigos do homem rico, e não modera seus gastos. Ao seu lado, não mais existem os beneficiários de rendas – os tempos são outros. [...] Rodeado de um outro mundo voraz e impiedoso da especulação, aventura-se em empresas com bases falsas (FAORO, 2001, p.233).
A personagem Rubião, percebendo-se como o ponto central das relações do grupo, visto que todos vinham a ele, iludiu-se com a aparência dos bajuladores e desprezou a implacabilidade que, outrora, prometeu a si próprio, derivando um processo ininterrupto de desequilíbrios: deixou-se dominar pela paixão que nutria por Sofia; concedeu o comando dos seus negócios a Cristiano Palha e abriu sua casa a políticos e comensais bajuladores, deixando seu capital se esvair, sorrateiramente, por meio de empréstimos, doações, títulos, bem como pelas compras de jóias e de outros presentes destinados à amada.
No afã do seu autocentramento, o protagonista começou a buscar evidências no comportamento de Sofia que justificasse a reciprocidade dos seus sentimentos: “Se aquilo não é gostar, não sei o que seja gostar. Aperta-me a mão com tanto agrado, com tanto calor...”(ASSIS, op. cit., p.43). E, submerso nessas conjecturas, foi até o jardim, para soltar o cão, Quincas Borba. Abrindo-lhe a porta, o cão saiu pulando com muito entusiasmo, chegou a lamber a mão do dono que lhe retribuiu com um soco. O cão recuou, mas vendo Rubião estalar os dedos, voltou-se a ele com a mesma alegria. Pulava e corria, saboreando a liberdade, sem perder o seu senhor de vista. “Tem o sentimento da confiança [...] Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é”(ASSIS, op. cit., p.44).
A analogia entre o estado de Rubião e o do cão, Quincas Borba, está patente na voz do narrador através de minúcias descritivas, no entanto convém ressaltar a evidência de que ambos se satisfaziam apenas com a suposição de serem amados. A liberdade que o dono concedia ao cão, naquela oportunidade, pode ser tomada como metáfora do mais peremptório desequilíbrio de Rubião em campo de batalha: a ruptura da resistência à paixão, a libertação do sentimento que estava estourando. O gesto para com o cão aconteceu antes de Rubião receber uma cesta de frutas com uma carta assinada por Sofia, que veio a lhe dar coragem para confessar seu amor por ela. A relevância da antromorfização de Quincas Borba no momento em que buscava os afagos de Rubião, recebendo pancadas como retorno, antecipa a correlata circunstância: a zoomorfização do seu dono perante Sofia, bem como perante toda a elite que o rodeia. Tal como o cão foi tomado por ser a garantia da herança, assim era a natureza da relação do grupo para com Rubião.
Os morangos cobertos por um lenço acompanhados de um convite para o jantar chegaram após um almoço no qual acompanhavam Rubião dois convidados Freitas e Carlos Maria. Tal presente lhe aparecia como um preâmbulo para que ele pudesse ir até o mais esplendoroso vin d’honneur , enfim, para que seus sentimentos alçassem o vôo da liberdade. Os convivas, sabendo que as frutas vinham da parte de uma pessoa casada, denominaram-nas de “morangos adúlteros”, Rubião replicava que estavam enganados, embora sem mencionar o nome de Sofia.
Ainda inebriado, sobretudo com o convite para o jantar que julgava ser de Sofia, pois desconhecia que a idéia tinha sido do próprio Palha, Rubião acompanhou os convidados, Freitas e Carlos Maria, até o portão, momento em que o cão se aproximou, recebendo um pontapé do dono, “que o fez gritar e fugir”(ASSIS, op. cit., p.50). Ademais, o jovem Carlos Maria demonstrou-se intolerante com a presença do animal, afastando-o com repugnância.
No jantar, Palha havia convidado alguns amigos que aguardavam para conhecer o mais novo capitalista. Rubião, que chegara atrasado, só tinha olhos para Sofia. E, tendo os olhares correspondidos, sentia-se amado e encorajado a revelar seus sentimentos. Um convite de Sofia para contemplar a lua foi a oportunidade que Rubião ansiava para declarar seu amor. Com vexame e aversão, Sofia ouviu o despropósito das suas palavras, “esteve a ponto de dizer alguma palavra áspera, mas engoliu-a logo, ao advertir que Rubião era um bom amigo da casa” (ASSIS, op. cit., p.58), um bom e generoso amigo, considerando o número de presentes que já lhe havia concedido.
Sendo a riqueza material o elemento de agregação e de desagregação das relações sociais naquela sociedade burguesa, serão propostos dois pontos básicos para esse momento da reflexão que trata do período de permanência de Rubião no centro da elite cosmopolita.
2.1. Campo gravitacional do conflito
Retornando para casa, perpassado de questionamentos acerca da confissão que havia feito, assistiu ao despertar de um mendigo que dormia nos degraus de uma igreja e despertava pelo barulho das vozes. O maltrapilho se sentou para olhar o que acontecia, depois voltou a se deitar, contemplando o céu. Rubião passava ainda a lembrar-se dos olhos de Sofia, num misto de arrependimento e êxtase.
No interior do campo de batalha, onde vigorava a ambição desmedida por riquezas, as estratégias do jogo de interesses começam a passar por profundas alterações, o frágil capitalista perdia ainda mais a consciência da sua posição, em detrimento do seu amor por Sofia.
O mendigo ainda acordado fitava o céu, o imenso céu, sem êxtase, de barriga para o ar. O céu, por seu turno,
[...] fitava-o também, impassível como ele, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu claro, estrelado, sossegado, olímpico [...]. Olhavam-se numa espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranqüilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu:
—Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
—Nem tu me hás de escalar (ASSIS, op. cit., p.65).
A ordem se decompunha para o mineiro fragilizado diante da promessa de ser forte e implacável. Rubião olhava para o mendigo, mas em nada pensava que não fosse nos olhos da amada. Não era estrategista, nem dado a compreender abstrações. Olhando para si e para o mendigo que conversava com o céu, apenas comparou seus cuidados com os dele, fato que “lhe trouxe à alma uma sombra de inveja. Aquele malandro não pensa em nada, disse ele consigo; daqui a pouco está dormindo, enquanto eu...” (ASSIS, op. cit., p.65-6). Julgava que o mendigo voltaria a dormir certamente, contentando-se em estar sob o céu, enquanto ele, com tamanha inquietação, sabia que não conseguiria dormir naquela noite. Seus pensamentos eram maiores e mais altos do que as palavras afrontosas do mendigo e ultrapassavam quaisquer delimitações, rumo ao céu de Sofia.
Através desse episódio metafórico, céu e terra, poder e fragilidade, a personagem Rubião tem diante de si a dialética de encontro e desencontro do seu espaço vital. Necessário se fazia que ele tomasse consciência do seu espaço, criando a partir e dentro dele uma identidade social, bem como que redimensionasse os pontos norteadores da sua trajetória de capitalista, como acontecia às demais personagens, que aos poucos, iam conquistando seus lugares sociais, legitimamente ou não. Rubião, no entanto, ao invés de ter redimensionado seu espaço, torna-se vítima da própria incapacidade de fazê-lo e seguiu tendo como referência norteadora apenas o encanto dos olhos de Sofia, que, ao contrário das suas perspectivas, usará dos seus sentimentos para explorá-lo até a sucumbência, em cumplicidade com os objetivos do esposo.
Enquanto Rubião passava pela praça, absorto no seu caos interior, o mendigo continuava a fitar o céu, sabia não poder escalá-lo na sua incomensurabilidade: um em cima, na sua superioridade, o outro embaixo, na sua inferioridade, mas certos de que não poderiam se tocar, eram existências que não podiam se interceptar. Se o céu esclarecia ao mendigo que ele não o podia escalar, o mendigo revidava a grandeza de tais palavras, dizendo que nem o céu podia cai-lhe em cima.
Que ingenuidade levara Rubião querer que o céu viesse abaixo, a fim de que seus planos se realizassem como pensou outrora, na ocasião em que o testamento foi aberto? Naquele momento, quis escalar o céu da riqueza, como agora desejava ou subir ao céu de Sofia ou que ele viesse abaixo. Dessa vez, o arrependimento não lhe veio como na ocasião do testamento, o arrependimento se fazia ambíguo e parecia desaparecer diante do desejo de ter a amada. “Que o céu viesse abaixo”!
2.2. Centrifugação
O ardil da disputa permitia aos novos conhecidos a valorização das posses de Rubião, mas era laminar ao seu romantismo e ao seu despreparo diante dos negócios. Laminar também era a memória que lhe trazia, ainda no retorno para casa, a lembrança do enforcamento de um negro, cena a que assistiu há muitos anos. “O instante fatal foi realmente um instante, o réu esperneou, contraiu-se”(ASSIS, op. cit., p.67-8). Foi, outrossim, em um instante inesperado para Rubião que Palha lhe propôs uma sociedade nos negócios, “Rubião, não podendo compreender os [seus] algarismos”(ASSIS, op. cit., p.98), pediu-lhe um prazo de cinco dias, avaliou os gastos despendidos, mas se o marido de Sofia não aparentava ressentimento por sua gesto durante o último jantar, sentia-se obrigado a agradá-lo. Ademais, Palha garantia multiplicar o capital investido e Rubião já sentia a necessidade de restituir os dispêndios feitos. Aceitou o convite e fê-lo “depositário dos [seus] títulos (ações, apólices, escrituras) [...] [Palha] Conhecia mais que o dono, a soma total dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravela, sem temporal, mar de leite”(ASSIS, op. cit., p.139-140).
O narrador segue a narrativa, expondo a total falta de habilidade de Rubião para lidar com as impassíveis engrenagens da especulação, não avaliava lucros nem dividendos. Os rombos nos seus cabedais se alastravam, mas o armazém em que era sócio progredia. “Palha e Sofia pertencem a uma camada provisória, a classe média desejosa de se elevar a outra categoria, mas ele [Palha] não era, por aceitação, homem da classe média. Seu inconformismo, inconformismo forrado de ambição, se mostrava na vida íntima, entre seus amigos”(FAORO, ibid., p.304).
Palha, que “era jeitoso, ativo e tinha o faro dos negócios e das situações. Em 1864, apesar de recente no ofício, adivinhou, – não se pode empregar outro termo, – adivinhou as falências bancárias” (ASSIS, op. cit., p.53-4), não averiguou menos habilmente a postura de desinteresse e desregramento de Rubião diante dos negócios. Quando os negócios prosperaram, tratou de se desfazer do sócio, não queria dividir os lucros do armazém. Palha já havia mudado da residência de Santa Teresa para uma no Flamengo e, naquela ocasião, dada a prosperidade financeira, “trazia apalavrado um arquiteto para lhe construir um palacete [em Botafogo]. Vagamente pensava em baronia”(ASSIS, op. cit., p.168). O casal se progredia na escala social enquanto a fortuna do incauto mineiro definhava, desordenadamente.
Rubião se tornou credor também dos seus comensais, pagava-lhes as dívidas sem obter a quantia de volta, ou porque ele próprio lhes perdoava ou porque os devedores não davam importância à restituição. Os comensais que começaram em número de quatro ou cinco foram se multiplicando, adentravam a casa com total liberdade até mesmo na ausência do proprietário, mas tinham o seu consentimento para almoçar, jantar, usufruir dos charutos, enfim para sentirem-se em casa, impondo até mesmo funções aos criados.
Na esgrima da convivência, Rubião perdia, gradativamente, o controle da situação, tornando-se vítima da exploração de todos que dele se aproximavam e, não ponderando mais lances ou golpes, era submetido de modo indefeso ao ataque.
Na ‘luta pela existência’ que forneceu a metáfora básica do pensamento econômico, político, social e biológico do mundo burguês, somente os ‘mais capazes’ sobreviveram, sendo sua ‘capacitação’ comprovada não apenas por sua sobrevivência mas também por sua dominação(HOBSBAWM, 2004, p.171).
Rubião dissipava seus bens aleatoriamente, pagava até mesmo algumas dívidas dos comensais sem que eles soubessem, para que não se sentissem constrangidos com sua atitude. Contando, ainda, a coleção de diplomas de sociedades, títulos de diversas congregações, incontáveis mensalidades, até mesmo “assinava jornais sem os ler”(ASSIS, op. cit., p.174).
O jornal Atalaia, que não estava no rol dos jornais não lidos, era outro modo pelo qual o dinheiro de Rubião se esvaía. Dirigido pelo bacharel e ex-deputado Dr. Camacho, o jornal era denominado de órgão do partido, que embora fosse de oposição e criticasse a violação das leis, “a autoridade não pode abusar das leis, sem esbofetear-se a si própria; – a vida dos princípios é a necessidade moral das nações novas como das nações velhas [...] – mergulhemos no Jordão constitucional” (ASSIS, op. cit., p.81), embora Camacho fosse um simulador de influência e de inconstante posicionamento, “agregou-se a vários grupos, segundo lhe parecia acertado [...] para simular influência, tratava familiarmente os poderosos do dia (ASSIS, op. cit., p.82). Sua intenção era tornar Rubião um deputado e, incitando a candidatura de Rubião, Camacho adquiria o capital para colocar a Atalaia em circulação, pondo-lhe a faísca do sucesso político, que “foi ardendo de si mesma, [...] de ambição ingênua, de cordial certeza, [que lhe dava a] visão antecipada e deslumbrante das grandezas”(ASSIS, op. cit., p.144). É esse aspecto de deslumbramento, de grandezas e de glórias que impele a personagem Rubião a atos inconseqüentes que geram a sua desintegração mental e econômica.
Contudo não é com esse deslumbramento de Rubião diante da ascensão política que se encerra essa etapa da configuração de análise proposta. Encerra-se com uma queda – uma queda que Sofia levou do cavalo, quando passeava em Tijuca, ao lado do esposo e de Rubião. Ao chegar à sua casa, mostrou-se muito preocupada se teria caído descomposta, mas o marido acudiu, jurando que nada ficou exposto, senão uma ponta da bota. Jurou “subindo de sagrado em sagrado [...] [Jurou] por Deus; não bastou. Juro por você; está satisfeita?”(ASSIS, op. cit., p.181). A devoção do marido à sagrada Sofia, no entanto, vem compensar o incômodo do tombo, concedendo, certamente, um reconhecível tom de deslumbramento ao término dessa etapa.
3. O colapso
É do capítulo 145 até o final da obra que está inserida a última parte da configuração apresentada, constituída de episódios nos quais Rubião sendo vencido, é retirado de campo. Não se ajustando ao meio, ele é expulso de cena, desprovido tanto dos seus bens, quanto da lucidez.
As perspectivas de Rubião, que já tinha seu capital defraudado, ganhavam outras dimensões, desde quando principiou nele certo descontrole sobre a imaginação, imagens de grandezas e glórias roubavam sua lucidez. As sucessivas e irreparáveis perdas financeiras, o fracasso da candidatura a deputado proposta por Camacho, bem como a intangibilidade das aspirações amorosas forçaram-no a fugir da adversidade do meio, os devaneios que passaram a lhe acometer eram como lenitivos diante de tais situações, “rompera o teto e se perdera no ar. A quantas léguas iria? Nem condor nem águia o poderia dizer. Em marcha para a lua”(ASSIS, op. cit., p.181-2), ia em busca de realização pessoal, alcançada somente naqueles surtos de delírios, que lhe permitiam ou escalar o céu ou trazê-lo abaixo, conforme discussão tratada no item Campo gravitacional do conflito, referente ao episódio do mendigo.
O processo de loucura foi ocorrendo gradativamente, e talvez só possa ser caracterizado, de fato, quando a personagem Rubião – após uma visita do major Siqueira, amigo apresentado por Palha, que lhe aconselhou arranjar um casamento – ouviu uma voz que dizia: “E por que não?”(ASSIS, op. cit., p.109). Rubião tinha em torno de si apenas o cão. Ao lembrar-se de que o amigo Quincas Borba, ao explicar sua filosofia denominada de Humanitismo, afirmava que havia apenas um único princípio universal que estava em todas as coisas, indagou a si próprio se não seria então o espírito do velho amigo no corpo do cachoro, mas foi levado a desdenhar de tal devaneio. A atenção dele voltou-se apenas para o conselho que lhe foi dado pelo major Siqueira: “O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma coisa; falta-lhe mulher. O senhor precisa se casar”(ASSIS, op. cit., p.108).
Mas “antes de cuidar da noiva, cuidou do casamento [...] Carruagens após carruagens”(ASSIS, op. cit., p.111). Várias noivas se alternavam nessas quimeras de bodas, “o pior é que todas traziam a cara de Sofia”(ASSIS, op. cit., p.113), sem descuidar dos detalhes de luxo e de nobreza. As noivas tinham os nomes “mais sonoros e mais fáceis da nossa nobiliarquia. Eis aqui a explicação: poucas semanas antes, Rubião apanhou um almanaque de Laemmert, e, entrando a folheá-lo, deu com o capítulo dos titulares”(ASSIS, op. cit., p.112). As cenas fantasiadas se enchiam da honraria de títulos, então Rubião passou a presentear os conhecidos com os mais variados títulos da ascensão nobiliárquica.
Rubião ao entrar no reino dos sonhos, do qual não sairia mais, deixa-se embair pelo ardil nobiliárquico. Imaginou-se, numa sociedade de barões [...] Era o delírio da nobreza, sombra e imagem da ambição nobiliárquica, doença que teria contaminado o nosso Império, tão pródigo de títulos, extravagante na sua liberalidade (FAORO, ibid., p.41-2).
Títulos, palácios, pompas matrimoniais... “E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo”(ASSIS, op. cit., p.113). Intensificaram-se os devaneios que lhe traziam a obsessiva convicção de que era o imperador francês Napoleão III, e Sofia, sua imperatriz Eugênia de Montijo. As fantasias avançavam tomando-o, a princípio, por períodos breves, contudo não tardaram a se alongar cada vez mais.
Da falência à loucura, ei-lo fora dos círculos de conversas, dos salões, do meio daqueles que lucravam à custa do capital que lhe pertenceu. Todos os comensais e bajuladores começaram a desprezá-lo. Restou-lhe o degredo para um casebre e deste para a casa de saúde, onde Palha o colocou, tomando o caso como “uma grande amolação [...] Um aborrecimento dos diabos”(ASSIS, op. cit., p.201).
Imaginar-se o imperador Napoleão III, era uma forma de ter sob seu controle todos à sua volta, tal quimera tornava-lhe mais leve o abatimento de saber-se um vencido e não mais um vencedor.
A personagem, em oblíqua trajetória, foi devolvida a Barbacena, fugindo da casa de saúde, Rubião seguiu acompanhado do único companheiro que lhe restou, o fiel Quincas Borba. A familiaridade paisagística da cidade mineira lhe restituiu, por instantes, migalhas de lucidez. Mas a durabilidade destas se esvaiu como as águas da chuva que corriam ladeira abaixo.
A meia rua, acudiu à memória do Rubião a farmácia, voltou para trás, subindo contra o vento, que lhe dava de cara; mas ao fim de vinte passos, varreu-se-lhe a idéia da cabeça; adeus, farmácia! Adeus pouso! Já se não lembrava do motivo que o fizera mudar de rumo, e desceu outra vez, e o cão atrás, sem entender nem fugir, um e outro alagados, confusos, ao som da trovoada rija e contínua (ASSIS, op. cit., p.234).
Ao ler essa parte final do romance, torna-se difícil distinguir “o que mais dilaceradamente nos punge nesse quadro: se a inquietação do animal, sentindo instintivamente a loucura do amo, ou se a euforia da demência do homem, no paroxismo do delírio”(JAQUES, 1974, p.71).
Rubião, diferentemente do êxodo, retornou para Barbacena, enovelado por uma trágica e completa degradação. O cachorro Quincas Borba, por seu turno, seguia os passos do dono, mas este obedecia tão somente às próprias pernas. A ironia da visão machadiana subverte a função orgânica dos membros inferiores, que passavam, naquele momento, a assumir práticas autônomas.
As pernas tinham feito tudo; elas é que o levaram por si mesmas, direitas, lúcidas, sem tropeço, para que ficasse a cabeça tão-somente a tarefa de pensar. Boas pernas! Pernas amigas! Muletas naturais do espírito!
Santas pernas! Elas o levaram ainda ao canapé, estenderam-se com ele, devagarinho, enquanto o espírito trabalhava a idéia do casamento(ASSIS, op. cit., p.109-110).
As pernas de Rubião, as mesmas que o conduziram ao canapé, levaram-no a lugares mais tangíveis, devolvendo-o à sua Barbacena. Elas o guiavam pélas ruas da velha Barbacena mais do que a própria cabeça. Se no canapé da casa de Botafogo, trouxeram-lhe passos largos na fuga com sua amada Sofia foi para que pudessem se amar livremente, e unirem-se em casamento: “um modo de restituir à vida a unidade que perdera, com a troca do meio e da fortuna”(ASSIS, op. cit., p.110).
Unidade que não foi restituída ao retornar para o antigo meio em que viveu até a abertura do testamento. Ao longo das ladeiras por onde as pernas o levavam a subir e a descer veio o cansaço e o desânimo. Foi a comadre Angélica, amiga de outrora, que o reconheceu ao vê-lo passar defronte a porta da casa e o acolheu. Em decorrência da chuva, uma febre abateu o seu físico, intensificando os devaneios. A unidade que lhe poderia ser restituída por estar de volta ao seu meio, desfez-se irremissivelmente, quando ao pegar uma coroa imaginária, Rubião colocou-a sobre a cabeça, nobilitando o imperador que se julgava ser – coroou-se em uma letal ostentação. “Não morreu súbdito nem vencido. [...] A cara ficou séria, porque a morte é séria; dois minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abicação(ASSIS, op. cit., p.236). Rubião, que “tinha medo da opinião pública”(ASSIS, op. cit., p.29), abdicou da própria lucidez, para não se ver como um vencido.
Ao contrário do que predica Helen Caldwel, ao afirmar que não foi o antagonismo da sociedade que levou Rubião à loucura, mas uma falha que estava nele próprio, uma confusão que jazia em sua própria alma (CALDWEL apud SÁ REGO, ibid., p.180), defende-se, aqui, a loucura como uma forma de escapar à própria decadência. Como um meio de não encarar o fracasso e o despreparo diante da avidez predominante no universo social da elite cosmopolita em que esteve inserido.
O cão, Quincas Borba, após a morte de Rubião, “fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois”(ASSIS, op. cit., p.236). Morreu para não romper os laços com o dono, acompanhando-lhe até no ato da morte; emendando, assim, o único fio de unidade que restou ao seu senhor, a sua fidelidade.
Considerações finais
O ciclo percorrido por Rubião remete ao intento do autor ao refletir sobre a ideologia da lógica liberal herdada das sociedades européias, num meio elitista que desconsidera a ética e os sentimentos humanos em detrimento dos bens materiais.
Nesse sentido, é que o episódio do mendigo se tomado o centro gravitacional da discussão pretendida. A disputa das personagens pela ascensão social passou representada na trivialidade de um “jogo de siso” entre um mendigo e o céu. Rubião, ao passar pelo mendigo, comparou-se com ele e percebeu a vasta distância que os separava, invejou-lhe, de sombra, o sono desinteressado. Não se dando conta de que a representação da sua trajetória lhe passava ante os olhos.
Ele estava ali, na corte como um capitalista, mas não dominava as regras daquele sistema. Sua tática era falha, no entanto achava-se apto e bem colocado, o bom acolhimento por parte dos novos conhecidos era uma prova disso. Achava que seu capital renderia e que poderia chegar a alturas cada vez mais elevadas na escala social. O sentimento de posse e de vitória era uma constatação de que se achava um capitalista em progresso. Em contrapartida, os membros da sua nova classe social, perceberam sua inexperiência e, olhando-o de cima, concluíram perceberam sua ineficácia diante dos negócios. Na semelhança do que o céu disse ao mendigo, a elite poderia cogitar a respeito de Rubião: não me haverás de escalar.
A loucura o poupou de enfrentar o declínio, julgando-se um imperador permaneceria na glória e na grandeza, os devaneios não permitiram que tomasse consciência do mendigo em que se transformou. Não pode escalar o céu da profissão, dos negócios ou da vida amorosa, mas o céu caía-lhe em cima sob forma de tempestade, “a chuva batia-lhe sem misericórdia”(ASSIS, op. cit., p.234), provocando, em seguida a morte da personagem que não pôde mais ver as estrelas rutilantes ou mesmo contemplar o Cruzeiro que, em mais uma investida fracassada, um dia sonhou transformá-lo em símbolo mediador entre ele e Sofia.
Referências
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 2.ed. São Paulo: FTD,1994.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4.ed. São Paulo: Globo, 2001.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital: 1848-1875. 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
JAQUES, Alfredo. Machado de Assis: equívocos da crítica. Porto Alegre: Movimento, 1974.