Cunha e Silva Filho


                      De quando em quando, sozinho, ou em família, apanhamos um álbum de fotos. Particularmente, gosto de rever (reler?) fotos: fotos de quarenta anos atrás, de vinte, de trinta, de cinquenta, paremos aqui. Fotos minhas e com meus filhos: um, na época, com três anos, o outro, com um aninho.Sempre gostei de olhar fotos, seja minha, seja de outros, seja de paisagens em preto e branco ou colorida. 
                      Fico imaginando. O que estaria eu pensando naquele instante em que tiraram a minha foto, em tal dia, em tal lugar e hora? Ou o que pensava de meus filhinhos quando tinham aquela idadezinha tão inocente, tão frágil, tão incerta, que aparecem numa foto que o tempo já marcou. Lá  estamos, em festa de aniversário de Alexandre, o mais novo, Elza, minha mulher, aparece com o Alexandre nos braços. A mesa posta, como diria Manuel Bandeira (1886-1968) pronta a ser servida: Lá está o bolo do aniversariante, em cima do qual há uma única velinha. Uma celebração verdadeira em família: só nós quatro. 
                      Me lembro de que papai e mamãe não eram de mandar tirar fotos dos filhos crianças. Por isso, não sei como eu era quando bebê, ou nos primeiros anos da infância. Mas, tenho certeza de uma foto minha com uns sete ou oito anos, na qual estou vestido com uma linda blusa de jérsei, e na foto apareço com um dos olhos mais baixo talvez por causa de  um terçol. Não sei onde foi parar essa foto? Acho que fiquei muito bem nessa foto desaparecida.
                    Uma outra foto que me chama a atenção. Foi aquela tirada por um amigo japonês, o Sato, no Aterro do Flamengo, nos anos sessenta.Nunca mais vi o casual amigo japonês. Nela estou sozinho, muito jovem, olhando para um horizonte incerto, com muitas nuvens. Estava em plena juventude dos dezenove anos. Não sabia que a vida era tão...
                    Tantas outras fotos chamam a nossa atenção. Aquela velha foto de papai, em Amarante, no início do século 20, com seus irmãos e meus avós paternos,. Papai, pequeno, talvez com seus cinco anos. Nessa foto, o que sobressaía eram os olhos vivos de papai , olhos que me parecem inquietos, olhos de quem não podia ficar sem fazer algo, além de perscrutadores. Não o achei bonito (bonito aparecia noutra foto, já quase quarentão, do busto para cima, usando um chapéu). O que distinguia a foto era o fato de que estavam todos muito elegantes nas suas roupas da época. Todos bem calçados, vestidos com elegância, mesmo luxo, bem de acordo com o status econômico e social de próspero comerciante local de que desfrutava meu avô Manoel Alexandre. Minha avó Candinha não me parecia bonita, lembrava logo a ascendência cearense, o rosto largo, enquanto meu avô possuía traços físicos de um homem apessoado, com bigodes grossos e o cenho sério. Diziam ter olhos verdes ou azuis.
                   Minha voz materna, Cotinha, dizem, era muito bonita, e meu avô, Avelino Alves Setúbal, não ficava para trás. Ela era de família de mulheres, em geral, bonitas, de pele clara ou morena clara com cabelos liso; ele, moreno, de cabelo um tanto crespo,, que denunciavam sua ascendência negra de mistura com brancos. Tinha boa altura e um olhar sedutor.
                   Mamãe, nas fotos antigas, do período da mocidade, era uma bela mulher, de rosto bem feito, cabelos levemente ondulados, morena clara, tinha um sinalzinho no lábio superior, que a tornava mais atraente.
                  Uma foto também que anda sumida foi tirada na Praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro. Nela, em pé, papai e eu aparecemos juntos, tendo um dos meus braços estendido sobre os seus ombros. Papai estava com oitenta anos. Foi na sua última visita ao Rio de Janeiro. 
                  Assim como há fotos do passado podemos dizer, projetando-nos temporalmente, que as há do futuro. E que fotos serão essas? Como estaremos nos nossos traços físicos, se o tempo nos conceder mais vida naquela idade provecta, tão pouco alcançada pela maioria das pessoas do presente? Não será o  nosso amadurecimento  físico e mental do presente, o hic et nunc,  uma pré-estreia do entendimento sem ilusões da representação do que seremos daqui a dez ou vinte anos?
                 Envelheceremos bonitos ou nos tornaremos feios? Pessoas há que, na velhice, ficam mais bonitas, outras, não, ficam irreconhecíveis, como naquele quadro do romance O retrato de Dorian Gray(1891). de Oscar Wilde (1856-1900), pintado por Basílio Hallward. Só que em situação invertida: quando mais passava o tempo, o protagonista permanecia sempre jovem ao contrário de seus contemporâneos, mas o quadro envelhecia, e envelhecia na medida em que as ações do  protagonista se tornavam mais cruéis Havendo, porém, a reviravolta moral do protagonista , este envelheceu de forma apavorante, ao passo que o quadro readquiriu a antiga forma como foi pintado

                 O certo é que a velhice nos pega de surpresa. De repente, num dia qualquer, nos damos conta de que não temos mais vinte anos, pois os anos, céleres, já passaram e deixaram marcas irreversíveis no corpo, no andar, na saúde, na voz, na memória. Uma vez, falando sobre o tempo com mamãe, lhe perguntei se ela se achava velha. Ela me respondeu: - “Não, meu filho, por dentro sou  jovem, ou tenho a sensação de que não envelheci.” A gente não percebe tanto o exterior, mas o que nos importa é o interior. A verdade é que a velhice nos prega uma peça. Quando pensamos que não, lá está ela solenemente instalada na nossa vida. 
                Não devemos, no entanto, antecipar desesperos. Acatemos o tempo e suas alterações em nós. Há mais coisas que superam a perda da beleza e do vigor. Por exemplo, a sensação plena de que estamos sendo úteis, de que somos respeitados, de que somos amados pelos que nos cercam e pelos amigos. Acho que isso será o melhor presente da velhice, além de outro que não posso aqui omitir: nosso envelhecimento se processa dentro de uma idéia – bela criação de Deus -, de pertencemos a uma contemporaneidade, a de nossa geração e a das gerações que nos precedem. A união desse pertencimento é que nos dá a sensação de que não envelhecemos de todo, de que não estamos sozinhos e de que a idade repousa belamente no interior de cada um de nós.
 

.