Escritor Lourenço Diaféria morre aos 75 anos

MIGUEL ARCANJO PRADO
da Folha Online

O escritor e jornalista Lourenço Carlos Diaféria morreu em São Paulo, aos 75 anos. Nascido no bairro do Brás, em 28 de agosto de 1933, na capital paulista, ele começou sua carreira jornalística na "Folha da Manhã", atual Folha, onde foi colunista.

Segundo a administração do cemitério Getsêmani, no Morumbi, onde o corpo é velado desde as 4h15 na sala 1, o jornalista sofreu um infarto em casa, por volta das 22h desta terça-feira (16). O enterro está previsto para as 16h, no mesmo cemitério.

O jornalista deixa viúva, Geiza Diaféria, 62, cinco filhos e três netos.

"O que fica do meu pai foi a capacidade dele de fazer bons amigos. Por conta de uma crônica escrita na Folha, ele foi preso em 1977 pela ditadura [militar, 1964-1985] e houve até ameaça de fechamento do jornal. Mas, depois, ele foi absolvido", disse à Folha Online Fábio Diaféria, 33, filho caçula do escritor.

Diaféria também colaborou para outros veículos como "Jornal da Tarde", "Diário Popular", "Diário do Grande ABC", além de ter escrito para as rádios Excelsior, Gazeta, Record, Bandeirantes.

Veja os principais livros publicados por Diaféria:

"Um Gato na Terra do Tamborim" (1976)

"Circo dos Cavalões" (1978)

"A Morte Sem Colete" (1983)

"O Empinador de Estrela" (1984)

"A Longa Busca da Comodidade" (1988)

"O Invisível Cavalo Voador - Falas Contemporâneas" (1990)

"Papéis Íntimos de Um Ex-boy Assumido" (1994)

"O Imitador de Gato" (2000)

"Brás - Sotaques e Desmemórias" (2002)

"Mesmo a Noite Sem Luar Tem Lua" (2008)

Com informações da Folha Online - 17.09.2008

Veja entrevista do escritor para a editora Ática:


Ática - Como você entende o gênero literário conto?
Lourenço Diaféria - Se posso cometer uma heresia premeditada, vou dizer: conto é um texto literário sem pressa, voltado para si mesmo, mas aberto às interpretações de seus significados. O contista o produz com paciência para guardá-lo durante meses e anos numa gaveta da cômoda e um dia publicá-lo como se tivesse sido escrito no dia. Ele não depende de leitores, se mantém eternamente vivo apoiado em suas próprias pernas. Claro que se algum universitário der essa definição de conto vai se "machucar". Portanto, não me responsabilizo. Se alguma vez fiz contos, a maioria foi sem querer; os que fiz de caso pensado foram raros. O tamanho do texto em si não serve para definir o que seja conto, pois ele pode ter muitos ingredientes e ficar do tamanho de um editorial, dilatando o clima e virando novela. Mas sem o fôlego e a paciência do romance.


Ática - Qual a importância que a memória histórica, afetiva, da infância ou mesmo dos dissabores tem para o escritor

Lourenço Diaféria - Sem a memória, falsa ou verdadeira, fiel ou distorcida, o escritor pode ser um excelente repórter do dia-a-dia. E um bom repórter pode ser um ótimo escritor. Preciso, elegante, claro, com fluidez. Desse ponto de vista, um relatório burocrático de trabalho, uma carta, até um bilhete na porta da geladeira pode ser uma peça de escritor. A propaganda comercial vez por outra apela para textos de escritores, nem por isso o escritor é um publicitário desempregado. As coisas se confundem muito. A memória pode ou não entrar na história. Um escrivão de distrito policial, um escrevente de cartório de notas, um desembargador ou um cirurgião cardíaco podem ser escritores. Mas, nesses e em outros casos, sem a ferramenta da memória, as mãos e os dedos, por mais hábeis que sejam, não chegam lá. Real ou imaginária, a memória do escritor é a matéria-prima para criar a vida e as memórias alheias.

Ática - O que foi a urbe para você? O que significa a megalópole para o criador de ficções?
Lourenço Diaféria - Fui perdendo aos poucos, ou até mais rapidamente do que podia ser aceitável, a noção precisa do que foi a urbe. Na verdade, acho que hoje eu sou a urbe, até porque nunca tive a experiência rural que marcou a formação de tantos escritores brilhantes e de muitos amigos que fazem parte hoje da nossa vida urbana de cada dia. Tenho a impressão de que a urbe existiu, concreta e palpável, quando a cidade de São Paulo tinha no máximo uns 3 milhões de habitantes, havia o chá das 5 no Mappin Stores e passava trem na atual rua dos Trilhos. No tempo da urbe todo trabalhador civilizado usava paletó, calça comprida, gravata, camisa social e chapéu para ir fazer compras ou passear no Centro. Quem não tinha roupa adequada ficava no bairro. Aprendi a ser urbano pela minha própria natureza. Logo, não estranhe se eu disser que não existe nada mais fácil para mim do que explicar o que vem a ser uma megalópole. Megalópole é um molusco invertebrado com várias patas. É uma espécie de gelatina que respira. É uma cidade que mistura urbe, suburbe, etorbis. Vou explicar melhor: megalópole é o mesmo que um x-tudo de pedra, aço, cimento e vidro com bastante mostarda e ketchup.

Ática - A crônica deve, preferencialmente, se ater à realidade como principal referência, ou a imaginação criativa do cronista deve estar livre de qualquer precedência?
Lourenço Diaféria - Por tradição, a crônica é um gênero jornalístico. Está ligada ao jornal, à revista, à imprensa, seja diária, semanal ou mensal. A crônica é uma atividade sistemática. O Rubem Braga - que todo mundo cita até sem ler e muitos apenas lêem sem citar - disse certa vez que a crônica é uma moléstia. Uma moléstia não é gripe, enxaqueca, fratura de tíbia ou tosse comprida. Moléstia é sinusite, tuberculose, gota, bico-de-papagaio. O sujeito acorda e vai dormir com ela. A crônica é isso: a obrigatoriedade do cartão de ponto. Como nenhum jornal aceita cronista que promete mandar matéria quando achar um bom assunto, é mais ou menos compreensível que a crônica, sendo assídua, aproveite os sonhos, o faz-de-conta, a inspiração do cronista. Na televisão - muito mais rara e menos definida - e no rádio a crônica pode ser substituída por imagens e música, sem que as pessoas reclamem e mudem de emissora. Na imprensa, o cronista costuma ser aguardado pelo leitor e tem o ar de ser estimado pelo dono do jornal, sem nem mesmo conhecê-lo pessoalmente. Mas convém ter cuidados: não pode ser enfadonho, prolixo, repetitivo ou professoral. O cronista precisa fingir que faz crônicas por divertimento e que trabalha por não ter o que fazer.

Ática - As crônicas incluídas em O imitador de gato abrangem qual período de sua criação?
Lourenço Diaféria - Perdi a referência cronológica. Se fosse minimamente organizado, tivesse um arquivo decente e me levasse mais a sério, acho que poderia enquadrá-las em fases. Mas não tive tempo de prestar atenção nelas. Como estive em vários jornais, em colaborações mais ou menos fixas em revistas de todo o tipo, fica bastante difícil organizar hoje o que nunca organizei. Nesse ponto a Ática, sem saber ou não imaginando saber, fez um trabalho profissional que não teria competência nem pique para realizar: exumou - acho que é esse mesmo o termo - crônicas que estavam espalhadas por aí, não apenas esquecidas, mas também perdidas. Consultar os arquivos das coleções de jornais e revistas, além de implicar num gasto acima das minhas posses e de meus antepassados, tornava-se inviável.