Em busca do tempo perdido, Proust
Em busca do tempo perdido, Proust

Em busca do tempo perdido e a expressividade de sentidos em Proust

Herasmo Braga

Professor e Ensaísta (UESPI/UFPI)

 

Determinados livros são citados por não serem lidos ou por serem muito citados acabam não sendo lidos? Essa ideia parece compor o cenário para inúmeros livros fundantes não só para a compreensão do mundo, dos sujeitos e de si, mas, sobretudo, para entendimento dos sentidos que em tudo nos cercam. Os sete volumes que compõem o itinerário de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust são um desses basilares para a composição de sentidos sob a égide de uma construção estética nas máximas de sensações e percepções. No entanto, acaba por ser muito elogiado, referencializado, exaltado, praticamente não lido por todos aqueles que o mencionam ou reconhecem a sua relevância.

A compreensão da vitalidade dos aspectos da vida apresentada e compartilhada ao longo das linhas das narrativas parece passar alheia diante do falseamento produzido em torno das obras em que se parte sempre do ponto comum para todos aqueles que não leram: a propagada Madeleine. Se houvesse a mínima cobrança ao falso expoente leitor dos entornos dessa passagem, como a tia Leonine, esse encontro com o chá e a Madeleine dava-se tradicionalmente antes de qualquer evento, entre outras coisas simples, a autoridade cairia e perceberia sem maiores apelos o desserviço de quem evidencia a não leitura vivenciada. Esse é um dos grandes problemas em torno de Proust e de tantos outros autores, os sujeitos não leitores almejam diferenciar-se, projetar-se como culto, diante daquilo que não leu e não teria, obviamente, a mínima condição de compartilhar experiências, pois não as adquiriu diante da inexistente leitura. E se cada propagandista/não leitor fosse exposto à mediocridade equivalente de todo aquele que fala de algo que não conhece, de leitura que não fez, das aprendizagens não adquiridas talvez o incômodo o tenha atraído para a leitura e outros que não quisessem ser apresentados dessa maneira atentar-se-iam para a importante ação de ler e sentir a presença do texto não só no seu intelecto, mas nas sensações e percepções diante das cores e singularidades que o mundo e suas realidades apresentam.

Saindo dessa perda de tempo em abordar os falsários leitores de obras e adentrando nos “saberes singulares”, como se expressa Antonie Compagnhon no tocante às obras ficcionais, Proust, em suas abordagens críticas, presentes em livros como Contra Sainte-Beuve, nas primeiras linhas que compõem ao que ele denominou projetos de prefácio, enunciará: “A cada dia, atribuo menos valor à inteligência. A cada dia, percebo melhor que só fora dela o escritor consegue captar algo de nossas impressões passadas, ou seja, atingir algo em si mesmo, e a única matéria da arte. O que a inteligência nos apresenta sob o nome de passado, não o é”. As ideias lançadas neste pequeno fragmento de Proust salientam devidamente o tom dos procedimentos estilísticos e das formas de expressividades realizadas ao longo dos volumes da contextura narrativa de Em busca do tempo perdido. A escrita almejada não é de caráter informativo ou meramente comunicacional. Busca-se algo mais. Uma expressividade que possa ser mais próxima da grandeza do sentido naquele momento. Como é feito o paralelo entre os leitores de Marcel Proust de que seria como os expressionistas, tais como Monet, a captar a instância da luz em seus quadros, em Proust, seria absorver o sentido daquele átimo. Alcançar o que vai além do aparente, do descritivo, do visível. Assimilar de maneira tácita, corpórea pelos vieses da percepção e do despertar das sensações. Uma formação estética não contemplativa, mas perscrutada diante dos nexos entre o ser e todas as outras formas e seres que o cercam. Seja na substância concreta, seja no imaginário, ou nas representações em que o tempo estará marcado pelo único existente: o presente. Assim, esteja, simultaneamente, o passado (memória) e o futuro (expectativa), como se refere Santo Agostinho, dando ao agora o instante substancial dos sentidos que realmente importam e realizam. Dessarte, no processo formativo da singularização, seja vivenciado pelos elementos diferenciadores que compõem as relações do homem e os demais elementos em torno. Nesse sentir diante das multiplicidades descontínuas das intrigas isoladas e justapostas que vão compondo a sinfônica narrativa em meio às intercorrências de sentimentos, aglutinar no leitor toda essa carga de experiências emotivas e estéticas para que possa promover nele consideráveis mudanças não só do ponto de vista cognitivo, mas de postura diante das ofertas de saberes ímpares disponibilizados aos que se atentam devidamente para as possibilidades de distanciamento dos enlaces fugazes tão imperializados no cotidiano.

Ater-se aos entendimentos de significativas experiências apresentadas sem maiores alardes acaba por produzir nos sujeitos ruínas e elevação de sentidos, por exemplo, quando Proust, ao longo da sua jornada romanesca emite profundas revelações por meio de simples ideias, como: “A primeira vez é a vez da inexperiência”. Nessa pequena frase pode-se promover grandes inquietações ou bálsamos. O lançar-se para novas vivências diante das incertezas que produzem experiências por meio das vivências para que se desapegue o olhar indevido das imobilidades, como nos enuncia o narrador Marcel em No caminho de Swann, “talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas”. Sair dessa falsa concepção automatizada e cotidiana é um dos enlaces de Em busca do tempo perdido. Perceber que pela urgência de ser capaz de algo definir-se, de propor-se a algo, como o narrador no empenho de se tornar um escritor, todavia, não como algo apenas de preenchimento descritivo de lugares e situações, mas ser capaz de narrar com expressividade, de atender aos sentidos apresentados e que possam reconfigurar aqueles que passarem pelas linhas. Sentir vidas e não apenas escrita, por mais belo estilo desenvolvido. Algo que provoque sensações e possa despertar para os instantes das vidas apresentadas para cada indivíduo.

Em atitudes como da avó do narrador na compra de presentes e livros enquanto criança e ele se recordava dos entraves com a mãe que o considerava muito elevado para a sua pouca idade, dizia a avó: “Eu não podia me decidir a dar a esse menino algo que fosse mal escrito”. E a seletividade dos livros não se centrava em estabelecer vínculos de vaidades ou projeções de superioridades futuras, apenas, na sua acepção, era algo a mais: “Na realidade, nunca se resignava a comprar nada do qual não pudesse tirar proveito intelectual e sobretudo o que nos proporcionam as coisas belas, ensinando-nos a buscar o nosso prazer em outro ponto que não nas satisfações do bem-estar e da vaidade. Mesmo quando precisava dar a alguém um presente chamado útil, quando tinha de dar uma poltrona, um serviço de mesa, uma bengala, ela procurava os ‘antigos’, como se, tendo o seu longo desuso apagado todo o caráter de utilidade, eles parecessem antes dispostos a contar-nos a vida dos homens de antigamente do que a servir às necessidades da nossa”. Interessante como se buscava nas mais rotineiras ações algo a mais do que o meramente aparente, o superficial. Mesmo nas coisas de utilidades, buscava-se certa aura. E aqui o sentido benjaminiano a que se refere, todavia, sem cair na distorção de algo sagrado, intocável, pois o sentido formulado por Walter Benjamin é associar aura como a presença da tradição cultural. Algo tão relativizado nos dias de hoje que se cria até o que não há construção histórica e cultural como a tal linguagem neutra. Apenas invencionismos estéreis como tantos outros apresentados e até exaltados na contemporaneidade. O passo de se tirar “proveito intelectual” não advém do conhecimento objetivo, do acúmulo de informações, de possível vaidade esvaziada de razão de ser, e sim, da preparação para discernir os afetos, como menciona Spinoza, a que somos acometidos. Fazer deles, pelo uso da inteligência e da capacidade do indivíduo, como forma constituidora formativa do sujeito no mundo. Separar, como nos evidencia o narrador Marcel, os aspectos do mundo das mundanidades. Servir-se daquilo que acrescenta, que transforma, que expande. Na escrita proustiana de captação do átimo de sentido pela expressividade no uso da linguagem, constitui uma dessas possibilidades à disposição para quem das suas linhas se envolver.

Estar consciente de que escrever não significa apenas grifar, nomear, publicar, e sim, partilhar visões e experiências de mundo. Ressignificar e evidenciar sentimentos relevantes que aguçam as percepções e ampliam sensações. Uma das vertentes que os romances contemplam é essa busca da capacidade da expressividade sincera, verdadeira, como nos evidencia o narrador em uma das passagens: “Quantas vezes, depois daquele dia, em passeios para os lados de Guermantes, não me pareceu ainda mais angustioso que antes não ter qualquer inclinação para as letras e ser obrigado a renunciar de vez a tornar-me um escritor célebre? A mágoa que eu sentia, enquanto ficava a sonhar sozinho, um pouco distante dos outros, me fazia sofrer tanto que meu espírito, para não mais senti-la, por si mesmo, numa espécie de inibição diante da dor, deixava inteiramente de pensar nos versos, nos romances, em um futuro poético com o qual a minha falta de talento me proibia de contar. Então, bem longe de todas essas preocupações literárias e em nada a ela relativos, eis que de repente um telhado, um reflexo do sol sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar por um prazer especial que me davam, também porque tinham o aspecto de quem guarda, além do que eu via, algo que me convidava a vir pegar e que, apesar de meus esforços, eu não conseguia descobrir. Como eu sentisse que aquilo se encontrava neles, ficava ali, imóvel, a contemplar, a respirar, a tentar ir, com o pensamento, para além da imagem ou do aroma”. Ir em busca do tempo é ir em busca de si. Buscar a si é almejar sentir o mais profundo, o que não se encontra escondido, mas tão somente a minha incapacidade não permite ver, perceber. Nisso o narrador se engaja: expressar não só por meio de palavras, não obstante, pelos sentidos vivos presentes nas relações entre os elementos da natureza, entre as pessoas, entre os sentimentos. Distanciar-se do ordinário que nada diz. Do automatismo cego dos dias.

São essas e outras questões que iremos abordar ao longo da nossa jornada em torno dos romances que compõem a magnum opus de Proust. Evidenciar saberes singulares que muito têm a acrescentar e transformar pela diferenciada capacidade expressiva que o narrador conquistou ao longo dos romances.