[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Há filósofos que gostariam demais de conseguir elaborar uma teoria do corno. Seria algo como que uma grande explicação da traição e também de determinadas reações a respeito da traição conjugal. Cada um poderia, então, lançar mão dessa teoria para tentar prever o momento em que seria traído. Poderia também se precaver contra atitudes perigosamente intempestivas após ser traído. Enfim, talvez todos sofressem menos tendo nas mãos algo assim, como que um tipo de algoritmo para “dar conta” dessa situação que faz a contingência se parecer, mesmo que ilegitimamente, rainha do mundo. Mas os filósofos são os primeiros a não acreditarem na competência da filosofia para tal e, então, tudo recai nas mãos dos escritores. O romance, o conto, a página policial, a poesia e o cinema ficam com aquilo que a filosofia não consegue abarcar e com o que a ciência não deve mexer. Tornar-se corno é algo que deve cair sob uma narrativa literária, nunca filosófica ou científica. Acreditamos nisso.

Em outras palavras: o corno não tem natureza e a situação que o gera não têm constantes e variáveis capazes de montar uma boa equação. Nem filosofia, nem ciência – ser corno é algo que fica nas mãos do literato.

É estranho isso, porque não há algo mais comum e que mais parece ser capaz de regularidade no mundo que o surgimento do corno e o desdobrar das atividades do corno.

Machado e Tchekov são mestres na arte de circunscrever o corno.

Entre os contos de Tchekov que falam do corno, há o fantástico “O vingador”. É aquele em que o traído, Fiodor Fiodorovich Sigaev, passa um bocado de tempo em uma loja de caça e pesca, ensaiando para comprar uma arma, de modo a eliminar a moça e o amante. Mas é claro que após mil e uma bravatas não compra arma nenhuma. Compra uma rede! Do ponto de vista do personagem, a rede foi comprada exatamente por vergonha de ter feito o funcionário da loja dar explicações mil sobre armas e, enfim, não ter sucesso em vender algo. Mas o engraçado mesmo é que, ao comprar a rede, o conto dá a oportunidade ao leitor de pilheriar Fiodor. O leitor pode ficar na esquina, esperando Fiodor passar para dizer: “ta pensando que corno é passarinho (ou peixe!)?”

Machado tem o seu “O relógio de ouro”. O personagem Leopoldo passa o conto todo questionando a jovem, frágil e bela esposa a respeito de um relógio de ouro que ele encontrara em um móvel do quarto. Grita de lá e de cá. Faz a moça chorar. Acha-se o maior corno da Terra e ameaça a esposa. Depois do pampeiro, lá pelas tantas, é lembrado pelo sogro que seu aniversário é no dia seguinte e, então, vê que “caiu a ficha”: o relógio não podia ser outra coisa que não um presente que a esposa havia comprado para ele. Ele, completamente desastrado, havia estragado todo o clima com aquela balbúrdia. Foi pedir perdão para a mulher, já no finalzinho do conto. Eis então que ela lhe entrega um bilhete, no qual uma mulher o cumprimenta pelo aniversário – era o bilhete que havia chegado junto com o relógio. Provavelmente, a mulher era uma das amantes do passado, o que é possível concluir por conta da fama pregressa de Leopoldo.

Também aqui, em Machado, somos trazidos ao final para o interior do conto, mas, nesse caso, não para fustigar o potencial corno e a efetiva corna, mas de um modo esquisito. Caímos sob o clima do conto ao nos perguntarmos: será que não deixei por aí um coração amante que, cedo ou tarde, vai me presentear com algo comprometedor, ferrando o meu casamento? Todos nós sabemos que não é necessário que tenhamos tido um relacionamento de verdade para que alguma mulher maldosa faça o que fez com Leopoldo. Elas fazem de qualquer maneira!

No conto de Tchekov, ficamos na condição de quem goza o corno. No conto de Machado ficamos na condição de apavoramento!

Essas duas situações são literariamente interessantes. Os contos são originais e as mãos desses dois mestres os fazem obras primas. Mas, seria difícil não encontrar outros contos semelhantes. O corno ou, melhor, a situação de corneamento parece comportar regularidades que permitem uma teoria. Mas, teoria do corno, não existe. Não acreditamos nela. Nós filósofos podemos só ser cornos ou fazer alguém de corno, não teóricos da cornice. Talvez seja um daqueles poucos casos em que nos resta apenas voltar ao clichê batido do senso comum: entre o corno e o céu há bem menos filosofia do que qualquer outra coisa. Entre o corno e o céu há … um par de chifres.

2012 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ