Dr. João Cândido de Deus e Silva
Dr. João Cândido de Deus e Silva

                                                                                                   * Reginaldo Miranda*

Embora não tenha visto a luz do dia pela primeira vez em solo piauiense, João Cândido de Deus e Silva foi um farol iluminado nesse sertão ao deus-dará, colocando sua inteligência e seus conhecimentos a serviço de nossa terra e de nossa gente. Foi um intelectual esclarecido, um pensador, um líder nacionalista que fez a diferença num momento primordial da vida nacional. Foi o cérebro pensante que orientou os revolucionários de Parnaíba em dois momentos estratégicos da formação da nacionalidade. Sabem todos que Parnaíba, a vila litorânea saiu à frente no movimento emancipacionista, mas isso só foi possível porque tinha em seu seio um grupo de homens idealistas. Destes, grosso modo, Simplício Dias da Silva era o cofre que garantia o financiamento da jornada, José Francisco de Miranda Osório era o homem das armas, do combate frontal, mas João Cândido era o cérebro pensante que arquitetava as ideias e as lançava sobre o grupo, empolgando-o com sua palavra fácil, com a firmeza de propósito e a convicção de seu ideal. Assim formado, esse grupo ousou muito, era impulsivo, beirando a irresponsabilidade ao seguir caminhos que só os jovens idealistas são capazes de trilhar.

Esse bravo filho do Norte, viu a luz do dia pela primeira vez e pela primeira vez chorou como fazem todas as crianças recém-nascidas, em Belém do Pará, a 11 de março de 1787. Era filho do capitão de milícias João de Deus e Silva[1], natural de São Romão de Mesão Frio, termo de Guimarães e de dona Maria de Jesus, natural do Pará. Neto paterno de André Ribeiro da Silva e dona Senhorinha da Silva, ambos naturais e moradores no dito lugar de Mesão Frio. Neto materno de José da Silva, natural da Vila do Conde e de dona Quitéria Rosa da Silva, natural da Ilha Graciosa, Vila da Praia, nos Açores.

Em Belém, iniciou seus estudos, mudando-se depois para Coimbra, onde prosseguiu em sua formação, matriculando-se em 15 de novembro de 1809. Alcançou a láurea de bacharel e, depois, doutor em leis pela Universidade de Coimbra, em 26 de maio de 1815. A demora na conclusão do curso foi em decorrência da interrupção dos estudos naquela universidade, em face da invasão de tropas francesas, tendo retornado ao Pará em princípio de 1811 e depois volvido a Coimbra. Nesse mesmo ano de 1815, submeteu-se ao processo de Leitura de Bacharéis[2], necessário para ingresso no real serviço. É possível, dada a sua formação, que antes de chegar a Coimbra tenha encetado algum preparatório em Recife, onde já fluíam os sentimentos nacionalistas. Estudara muito, possuindo sólida bagagem cultural, conforme vai demonstrar mais tarde.

De regresso ao Pará inicia carreira na magistratura, passando pelos cargos iniciais, conforme o costume da época.

Por decreto de 6 de fevereiro de 1818, lavrado pelo rei D. João VI, já estabelecido no Rio de Janeiro, foi nomeado para o cargo de juiz de fora das vilas de Parnaíba e Campo Maior. Chegando a Parnaíba depois de longa viagem, tomou posse a 23 de agosto de 1819, em cujo exercício permaneceu até o ano de 1827, quando viajou para a Corte, a fim de exercer o mandato de deputado geral por sua província na primeira legislatura de nossa casa legislativa (1826 – 1829), convocado na qualidade de suplente.

Durante esses quase oito anos em que permaneceu no Piauí, iria escrever belo capítulo de nossa história. Foi sempre uma pena lúcida a serviço da justiça e uma voz sábia, ciente de seu papel, formando convicções duradouras.

Proclamada a Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, pelo príncipe regente D. Pedro de Alcântara, às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, logo Portugal conscientiza-se de que seria difícil retomar aquelas capitanias do Sul e Sudeste. Todavia, coloca em ação um plano de divisão do vasto Império Colonial, a fim de manter as colônias do Norte e Nordeste, seccionando da Bahia para cima. Nestas, em sua quase totalidade os governos mantinham-se receosos, mas fieis à coroa lusitana. A Bahia, o Maranhão e o Pará, por exemplo, estavam firmes com Lisboa. Na execução desse plano era o Piauí uma peça chave, porque encontrava-se estrategicamente centralizado entre essas regiões, podendo correr em auxílio de uma parte ou de outra. Como prova de que o governo de Lisboa levava a sério essa estratégia, mandara para Oeiras um experiente militar, experimentado nas campanhas contra as forças de Napoleão Bonaparte, o major João José da Cunha Fidié. E não viera a passeio, assumindo logo o cargo então existente de governador das armas, passando, assim, a comandar os regimentos e as armas e munições.

Então, sabido dos acontecimentos do Sul permanecia o Piauí solidário a Lisboa, embora atento ao que ia acontecendo. Porém, em Parnaíba, a vila mais próspera de nossa capitania, o Dr. João Cândido de Deus e Silva já confabulava com Simplício Dias, Domingos Dias, Miranda Osório, José Ferreira Meireles, Bernardo Antônio Saraiva, Ângelo da Costa Rosal, Bernardo de Freitas Caldas, Joaquim Timóteo de Brito e outros paladinos da Independência. Em 30 de setembro exortava a Junta de Governo a aclamar Dom Pedro imperador, dizendo:

 

“A melhor, a maior, a mais rica, a mais populosa parte do Brasil tem se declarado a favor da causa da independência; como persuadir-nos que o resto não siga a mesma causa? Ou quererão os povos olhar de sangue frio o seu país dividido, seguindo o sul um sistema e o norte outro?”.

 

No entanto, inconformados com a demora daquelas autoridades reúnem-se em 19 de outubro do mesmo ano e lançam o brado da Independência na Parnaíba, aclamando o príncipe Dom Pedro, imperador do Brasil, entre as mais vivas e ruidosas manifestações populares.

Chegando em Oeiras essa alarmante notícia, contra Parnaíba marchou o major Fidié, no comando de suas forças, para abafar o movimento. Porém, chegando ao seu destino não encontrou a quem punir, porque os patriotas haviam passado ao Ceará, que também acabara de aderir à Independência. Ali, arregimentavam forças.

Enquanto isso também a intermediária vila de Campo Maior se levantava liderada por outro grupo de bravos patriotas. No mesmo sentido Oeiras. E contra elas marcha Fidié, retornando de sua jornada a Parnaíba. Então, dar-se o encontro das forças antagônicas nas proximidades de Campo Maior e a desastrada Batalha do Jenipapo, de 13 de março de 1823, onde cada tropa pôde mostrar o seu valor. Depois, vem o cerco de Caxias e prisão de Fidié, com vitória dos patriotas. Consolidada a Independência segue a vida na antiga capitania, agora província do Piauí. E o juiz João Cândido continua, sem solução de continuidade, no exercício de sua judicatura.

Mais tarde, estoura em Pernambuco a Confederação do Equador, de caráter republicano, com adesão imediata da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, reagindo contra o centralismo monárquico. Novamente entra em ação o juiz João Cândido de Deus e Silva, então presidente da Câmara municipal de Parnaíba. Aliando-se aos mesmos paladinos da causa anterior, nega juramento à Constituição e aderem ao movimento revolucionário, no que são seguidos pela vila de Campo Maior. Com o fim do movimento, em 1825, foi preso e processado pelo crime de rebelião e perjúrio o Juiz João Cândido e seus companheiros, depois sendo todos absolvidos e postos em liberdade por sentença exarada em 18 de novembro de 1827.

Por fim, seguiu ele para a Corte em 1827, a fim de assumir, na qualidade de suplente convocado, o mandato de deputado geral por sua província natal (1827 – 1829), sendo reeleito para a legislatura seguinte (1829 – 1831). É importante ressaltar que ele já havia concorrido ao mesmo cargo antes da independência, nas eleições de 10 de dezembro de 1821, não tendo assumido o cargo porque tendo empatado em número de votos com o bispo D. Romualdo de Sousa Coelho, foi este designado pela sorte. Em 1827, apresentou à Assembleia Constituinte proposta para que as heranças e legados deixados a estrangeiros residentes fora do Império, pagassem sobre seu valor líquido 20% (vinte por cento) ao Tesouro Nacional.

Em 1830, era juiz de fora da vila de Santo Amaro, em São Paulo.

De 1831 a 1833, exerceu o mandato de deputado provincial do Rio de Janeiro. Nessa província, foi também secretário de Governo e membro do conselho de instrução pública. Em 1835, era redator do Correio Oficial do Rio de Janeiro.

Com a fundação dos cursos jurídicos no Brasil, em Olinda e São Paulo, foi ele o segundo lente de Direito Civil da Faculdade de Direito de São Paulo, lecionando apenas durante o ano de 1831, quando pediu sua exoneração. É importante ressaltar que desde a fundação das duas primeiras Faculdades em 1828 e durante todo o Império, existiam apenas duas cadeiras para o ensino de Direito Civil, sendo uma no terceiro (Das Pessoas e Família) e outra no quarto ano (Das Coisas, Sucessão e Obrigações). Assim, em São Paulo, somente em 1830 e 1831, foram inauguradas as Cadeiras pelos mestres Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral e João Cândido de Deus e Silva, respectivamente.

Prosseguindo na magistratura, foi nomeado desembargador da Relação do Maranhão, em cujo cargo obteve o benefício da aposentadoria, por decreto de 5 de junho de 1854. Depois, passou ao exercício da advocacia na comarca de Niterói, no Rio de Janeiro.

Em 1º de fevereiro de 1854, pelas oito horas da noite, sofreu a terrível dor de perder um filho querido, Cândido de Deus e Silva, com a idade de 18 anos e 25 dias, afogado na ponte das barcas da carreira entre a Corte e Niterói. O jovem era uma esperança moça, tendo concluído oito anos de estudo de latim, francês, geografia, inglês, desenho, música vocal e instrumental, filosofia, aritmética, geometria, álgebra, história sagrada e profana, física, botânica e história natural, conforme disse o resignado pai em nota à imprensa[3].

Poliglota, tradutor, verteu várias obras para o idioma pátrio. Também, publicou variados discursos, plaquetas e obras de cunho histórico e científico.

Em face dos relevantes serviços prestados ao País, foi agraciado com as comendas da Ordem de Cristo e da Ordem da Rosa. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

No fim da vida –, lembrou o escritor Joaquim Manuel de Macedo – estranho aos certames do mundo político, afastado da administração pública, cansado dos trabalhos literários, tirando apenas do exercício de uma limitada advocacia os meios de subsistência, o desembargador João Cândido de Deus e Silva passou os últimos anos quase ignorado no sítio, tranquilo e suave que adquiriu em Niterói, onde faleceu em 8 de agosto de 1860. Foi sepultado no cemitério de Maruí, em Niterói. Vivia desde alguns anos trêmulo e falto de vista, sobrevivendo de renda muito diminuta[4]. Deixou viúva dona Francisca Isabel Cândida da Silva e algumas filhas[5] e genros, e a quantos o conheceram o exemplo de suas virtudes cívicas e morais. Foi um personagem de primeira grandeza da história pátria.

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* REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Email: [email protected]

Bibliografia:

 

COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Coleção Centenário 17. Vol. 1. 3.ª Ed. Teresina: APL, 2015.

 

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1883.

 

 

 


[1] Era divorciado no juízo eclesiástico, de dona Rosa Maria da Conceição (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 129. D. 9952; Cx. 137. D. 10399; Cx. 143. D. 10863).

[2] PT/TT/DP/A-A/5-3-9/74/1. Desembargo do Paço, Leitura de bacharéis, letras I e J, mç. 74, n.º 1.
PT/TT/FSACR/A/M115/00152. Família Saldanha e Castro e Falcão Trigoso, mç. 115, n.º 152.

 

[3] Correio mercantil, 13.2.1854.

[4] Echo da Nação, 2.7.1860.

[5] Acompanharam o velório a viúva, filhas e genros. Eram filhas: 1. Delmira Cândida Amélia da Silva Maia; e 2. Cândida de Deus e Silva, esta última natural do Rio, com 11 anos de idade na data de óbito do pai, falecida também no Rio de Janeiro, em 24.9.1923, com 74 anos de idade, fora casada com Luiz Carvalho da Silva.