[Washigton Ramos]                                             

O título acima é parte de um verso do poema “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, poeta português. Lembrei-me dele ao ver duas notícias bizarras que circularam recentemente. Uma foi sobre o Leblon, um dos bairros da alta classe média carioca, onde bares e restaurantes, em plena pandemia do covid-19, abriram as portas e ficaram lotados de pessoas, muitas sem máscaras e debochando das medidas de segurança. É gente de excelente condição financeira e podem se tratar nos melhores hospitais. Não ligam a mínima se estão contaminando os outros e talvez pensem em adoecer e morrer para, morbidamente, sentirem um pouco de sofrimento.

 A outra notícia veio da Flórida, nos EUA, onde jovens se reuniram numa festa e fizeram um concurso para premiar aqueles que primeiro se contaminassem com o coronavírus. Parece inacreditável, mas é verdade.

Esses dois casos demonstram que uma parte do mundo ocidental hoje, principalmente aquela mais rica, está enfastiada, deprimida, muito entediada dentro de casa, mesmo com todo o conforto de que desfruta, como geladeira, freezer, vários televisores, netflix, computadores, internet, celulares, tablets, ar-condicionado, churrasqueira, piscina e o escambau que se possa imaginar para dar comodidade e prazeres físicos.

Contraditoriamente, no entanto, essa turminha cheia de tédio está se degenerando, querendo se lascar, querendo sofrer. Foram tão bem-cuidados e mimados, que já não aguentam mais tanto conforto, tantas delícias. Muitos têm pais que eram pobres, passaram necessidades e ralaram muito para lhes dar essa “vida bacana.” De vez em quando, sabe-se de jovens da alta classe média que foram morar em favelas no Rio de Janeiro e caem na prostituição e na droga. Há notícias também de pessoas que vêm de países ricos apenas para conhecer favelas e sentir na pele o mórbido prazer de um assalto. Um cartum do Angeli ironizou uma vez o passeio que uma agência de viagens fazia por área pobres, inclusive reproduzindo a fala arrevesada de um turista: “Agola eu quelê vê homem comendo calanga assada.”

Uma triste e perigosa consequência disso é não só o fato de uma parte de essa turminha deprimida gostar de votar em candidatos autoritários, como também de estar se debandando para grupos neonazistas e outros intolerantes, que odeiam e perseguem negros, homossexuais, judeus e árabes. Isso é que é o mais terrível e assustador.

Sempre que eu me lembro desse pessoal entediado e de pessoas que reclamam do isolamento social, a menina Anne Frank me vem à memória. Ela morou num pequeno apartamento, nos fundos de um prédio, com mais oito pessoas, durante vinte e cinco meses, sem nada das facilidades de comunicação que temos hoje e ainda sem poder cantar, nem correr, nem falar alto, nem pular e às vezes tendo que manter o mais absoluto silêncio durante horas. Ela não podia, coitada, fazer coisas que são tão banais na vida de uma criança de treze anos de idade. Porém não tenho conhecimento de que ela alguma vez tenha tido o desejo absurdo de sofrer. Pode-se dizer que ela já vivia sofrendo. Tudo bem! Não defendo sofrimento para ninguém! Mas, para sobreviver dignamente, um lavado, ou uma capina debaixo de sol quente, ou ministrar dez aulas por dia, ou qualquer outro serviço duro podem acabar com o tédio de muita gente.