“Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são”.  Miguel de Cervantes em Dom Quixote, século XVII.

         *Gisleno Feitosa

Dia desses, recebi uma surpreendentemente ligação do meu compadre Zé das Coivaras que se encontrava em São Paulo. Queria me contar o suplício que foi a sua viagem de avião. Ele que nunca saíra dos limites geográficos do Centro do Araújo, encravado nos confins de Miguel Alves. Falava alto, sem parar, demonstrando incomum ansiedade.

Tudo começou quando um de seus 15 filhos se deu bem na capital paulista e lhe enviou uma passagem para que ele presenciasse o  sucesso do rebento e, de quebra, conhecesse a nora e o casal de netinhos. A tortura começou na chegada ao aeroporto. Com a mala numa das mãos, tentou empurrar a porta de vidro que, não sabe como, se abriu sozinha e ele foi esbarrar no chão. Tudo bem, um pequeno acidente. Aborrecimento maior se deu quando, diz ele, fizeram-no passar por uma “porteira” que teimava em apitar toda vez que ele cruzava. Era tentar passar e um par de “caboclos parrudos de paletó preto” barravam a sua passagem. De tanto revirarem os seus bolsos, encontraram a causa do barulho: um minúsculo canivete de picar fumo, que nem ele mesmo lembrava que trazia. Fato consumado, ficou sem o seu companheiro de mais de cinqüenta anos e foi levado de bolo para dentro da aeronave.

Sentou na primeiro assento que encontrou. Daí até chegar ao que estava marcado no seu cartão de embarque (12F) foi um “Deus nos acuda”. Para se abancar, teve de pular por sobre as pernas de um casal muito gentil que lhe ensinou a amarrar um cinturão, prendendo-o no assento. Estava cabreiro (como me disse ao telefone). Afinal, para que viajar amarrado? Logo, logo, descobriu: “uma mocinha espilicute falava, num sei de onde, enquanto outra mostrava uma mascara caindo de cima que era pra botar na cara, quando faltasse o ar. Teve mais: dixe ainda que era pra gente se abufelar com o assento do banco quando o bicho caísse n’água”. Tentou desesperadamente se levantar, sem sucesso. Queria voltar para o seu cantinho. O moço, ao lado, tentava acalmá-lo. Nisso a aeronave pegou carreira e levantou vôo. Ele, na janela, via as casas passarem ligeiro e, depois, começarem a balançar. “Deu uma embrulhança na boca do estambo e os quibas quaje vieram parar na goela”, disse atarantado. Uma mocinha faceira passou e perguntou-lhe se estava com falta de ar. Ele respondeu, no seu jeito simplório: “farta ar não, moça, farta é terra mermo, debaixo dos pé”!

Na hora do lanche, não aceitou; queria era um assado de panela ou uma galinha caipira com pirão de parida. Só ofereceram um saquinho desenxabido de bolacha com “uns bombons grudentos que pregavam na chapa”. Pediu uma “mangueira’; deram-lhe um suco de manga, sem açúcar. Tomou à força e limpou a boca numa toalhinha branca com uma coisas escritas, que estava presa ao assento da frente. Os vizinhos pereciam dormir; ele não teve esta coragem. Espiava com o rabo do olho as nuvens e, vez em quando, uma casinhas miudinhas, lá em baixo. Rezou, fez mil e uma promessas. A que mais lembra é a de que jamais poria os pés num avião. Chegou vivo, benza Deus!

Só então, eu pude falar, explicando que isso acontecia com muita gente. É comum, o medo de viajar de avião. Em algumas pessoas, as mãos suam e gelam antes mesmo de o avião começar a se mover. Outras, sentem palpitações, tonturas e náuseas. Há casos de gente que não consegue dormir, na véspera da viagem. Algumas dessas pessoas com medo de avião, simplesmente deixam de voar, outras, curiosamente, desenvolvem um impressionante repertório de superstições para alívio da ansiedade quanto têm mesmo de viajar. Há quem viaje somente na primeira fileira para sair mais rápido em caso de pouso forçado. Outros carregam santinhos, costumam se benzer ou fazer “simpatias”, só embarcam com o pé direito ou evitam ir ao banheiro para não "desequilibrar" a aeronave.

Para quem tem medo de avião, não adianta explicar que apenas um entre milhões de vôos acabará em desastre, o fóbico sempre viverá na expectativa de que o vôo fatídico será justamente o dele.

  *Gisleno Feitosa é médico e brevemente será Cidadão Piauiense.