Raimundo Carrero

Na coluna passada, dissemos que há dois caminhos para o narrador do texto literário: 1) Digressão; 2) Comentários. E mostramos, claramente, que a digressão foge do objeto central, numa fuga com retorno técnico. Verificamos, agora, que o narrador onisciente tanto pode usar o comentário quanto a digressão, tomando como exemplo os dois primeiros capítulos de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Na técnica, os dois capítulos, vistos isoladamente, são comentários, isto é, na construção de cada. Mas unidos, os dois capítulos funcionam como digressão.

O comentário, de começo, meio e fim, traça uma linha reta. Na digressão há, pelo menos, uma reta, uma curva e, finalmente, uma reta. Pelo menos em princípio, para efeito de compreensão. Agora veremos que os dois capítulos são comentários, mas com classificação diferente. Estudamos, inicialmente, que há três formas de comentário:

1. Comentário ou análise de um fato;

2. Comentário que corresponde à reação ou momento do personagem;

3. Comentário ou crítica irônica ou maliciosa;

Ou seja, o capítulo Do título é (1) comentário de um fato, (2) ligeiro comentário ou crítica maliciosa, (3) seguindo-se o comentário de um fato e uma crítica ou comentário malicioso; e o segundo capítulo Do Livro é um comentário que corresponde a uma observação ou um momento do personagem. Por enquanto, vamos estudar apenas o primeiro capítulo, conforme os parágrafos.

1. Comentário de um fato:

Uma noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

- Continue, disse eu acordando.

- Já acabei, murmurou ele.

- São muito bonitos.

2. Comentário ou crítica irônica ou maliciosa:

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota a meus amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você". - "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro, a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo". - "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã, venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote; dou-lhe chá, e dou-lhe cama; não lhe dou moça".

3. Comentário à reação de um fato e comentário ou crítica irônica e maliciosa:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas lhes pôs o vulgo do homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando. Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.

Percebemos, agora, o que vem a ser a técnica geral e a técnica particular. Na técnica particular, há um comentário de começo, meio e fim. Na técnica geral, uma digressão. Ou seja, os dois comentários juntos formam uma digressão porque realizam uma curva até que o narrador chegue ao ponto central.

Assim temos a linha do capítulo:

Comentário a um fato     malicioso    fato e malicioso

Começo                           meio           fim

Apesar da diversidade de técnicas, o comentário não faz uma curva, não abandona a linha narrativa, não desloca o interesse do leitor. Por isso é comentário. O comentário obedece a um rigor técnico, mas sem engessar o texto, exato e certo. Por acaso, terá que ser sempre assim? Não. O escritor tem o direito e a obrigação de encontrar seus próprios caminhos. Mas os caminhos se tornam mais fáceis com o estudo e o exame dos clássicos. Sempre acreditando que o narrador pode fazer o que quiser, em todos os momentos. O estudo e o trabalho devem ser, porém, constantes.

EXERCÍCIOS
Vamos pensar juntos. Eu quero comprar uma roupa. É um fato? É. Pois bem, é preciso agora comentar este fato. Comece dizendo que foi a uma loja, no centro da cidade, e, ao entrar, foi recebido por um vendedor. Está bem assim? Se não quiser, mude de assunto. Conte como chegou à loja e como ocorreu o encontro com o vendedor. E, é claro, narre de que maneira foi recebido e os encaminhamentos. Ou seja, mostruário de roupas e os detalhes: cintura, perna, bolsos, essas coisas. Leia mais uma ou duas vezes o comentário de abertura do romance de Machado de Assis. Faça o exercício.

Vamos ao segundo comentário ou crítica irônica ou maliciosa. Como é isso? Você viu que Machado de Assis usa um ligeiro diálogo, depois do comentário do fato. Mostre uma cena que a roupa que lhe é apresentada parece feia e deselegante. Em seguida, crie o diálogo. Ou apenas uma narrativa. Fique livre para o que considerar melhor.

Continuando o exemplo, escreva o comentário do fato com um comentário malicioso. Ou siga o seu próprio exemplo.

Até mais.