Cel. Raimundo Gomes (Coronel Doca)
Cel. Raimundo Gomes (Coronel Doca)

Reginaldo Miranda[1]

 

O coronel Raimundo Gomes da Silva nasceu no período de consolidação do Segundo Reinado, em cujo regime laborou e ascendeu na vida pública e privada, atravessando incólume a Primeira República, para somente render alma ao Criador depois da Revolução de 1930. Foi um legítimo e autêntico representante do coronelismo brasileiro, centralizando a vida política, social e econômica de sua municipalidade.

Viu a luz do sol pela primeira vez e pela primeira vez chorou, como fazem todas as crianças sadias ao nascer, em 2 de janeiro de 1845, no Sítio do Meio, situado na beira do rio Canindé. No entanto, seu parto foi complicado, levando a mãe a óbito 13 dias depois. Era filho de Amaro Luiz da Silva e dona Feliciana Maria da Silva, jovem casal de pecuaristas e lavradores do antigo termo de S. Gonçalo. Sendo arrancado dos braços maternos tão prematuramente, foi criado desde os primeiros dias de nascido na vila de S. Gonçalo, hoje cidade de Regeneração, sob a proteção, cuidados e amor filial da avó materna, dona Josefa Maria da Silva, uma respeitável viúva que ali exercia atividade comercial. De fato, era neto materno desta matrona e de seu segundo esposo, o falecido Raimundo Gomes, de quem herdara em homenagem, o nome. Dona Josefa era natural do termo de Valença, mas desde a mocidade mudara-se para a povoação de São Gonçalo, ereta em vila no ano de 1833, em companhia dos genitores, o açoriano Pedro José Nunes e a valenciana Ana Bernarda da Silva, genearcas de numerosa estirpe. Estão entre os fundadores, responsáveis pela transformação da povoação de São Gonçalo, de sofrido aldeamento indígena em moderna vila imperial brasileira.

O Sítio do Meio, fazenda com três léguas e meia de comprimento e largura irregular, fora adquirido por volta de 1735, por seu tetravô, o português Caetano Machado de Araújo, sucessor do primeiro povoador Lourenço da Rocha Pita. No entanto, depois da morte desse ancestral, fora arrematado no juízo de órfãos da comarca de Oeiras, por Feliciano de Barros Galvão[2], em cuja companhia passaram a morar os herdeiros do antigo senhor[3]. O filho deste, Manoel Machado de Araújo fora casado com Maria Corrêa de Assunção, sendo os genitores de Ana Maria de Araújo; esta casou-se em 1º de dezembro de 1786, no referido Sítio do Meio, então pertencente ao termo de Oeiras, hoje de Amarante, com Ignacio da Silva Lima, nascido em 1762, na vila de Pombal, na Paraíba, filho de Ambrósio Mendes da Trindade e Maria da Silva. Esse paraibano foi um respeitado fazendeiro do vale do rio Canindé e benfeitor da Ladeira do Castelo, onde realizou serviços no ano de 1829, por cuja razão recebeu louvores do governo provincial. Foi primogênito desse casal, Ignácio da Silva Lima Júnior, fazendeiro, casado com Antônia Maria da Trindade, falecida de parto, sem os sacramentos, em 26 de julho de 1831. Seu filho Amaro Luís da Silva, nascido em 1825, é o genitor do biografado.

Na vila de S. Gonçalo, hoje cidade de Regeneração, Raimundo Gomes da Silva, chamado na intimidade “Doca”, estudou na escola pública da localidade, com o mestre João Vicente Pereira, segundo professor de ensino público daquela vila. No boletim escolar de 1853, aparece “com 8 anos de idade, lições boas, progressos muitos e procedimento bom”. De boa índole, astuto, inteligente, aprendeu o que era proporcionado por aqueles dias, sendo o suficiente para militar na vida pública e prosperar na atividade privada.

Desde muito moço exerceu atividade comercial, ao lado dos familiares e prosperou no criatório bovino. Era a vila de S. Gonçalo um próspero centro de negócios da província. No entanto, nos dias de sua juventude dividiu-se a municipalidade em dois partidos antagônicos, sendo um que lutava veementemente para transferir a sede da municipalidade para a margem do rio Parnaíba, por entender que facilitava a atividade comercial, tendo em vista que, com o incremente da navegação a vapor, aquele rio ia se constituindo em corredor comercial do Meio-Norte brasileiro; com a transferência da vila e de seus depósitos os comerciantes evitariam transportar as mercadorias do porto até a vila; esse partido foi apoiado pelo presidente José Antônio Saraiva, que, em 12 de setembro de 1851, promulgou lei autorizando a transferência da vila para a margem direita do rio Parnaíba, confluência com o Mulato. Contudo, muitos outros moradores resistiram a essa ideia, alegando que possuíam suas casas residenciais e negócios na localidade, causando-lhes prejuízos a referida mudança; em 17 de agosto de 1854, conseguiram revogar aquela lei sem que tivesse sido executada; entre esses últimos estava a família de Raimundo Gomes da Silva. Porém, continuou o antagonismo de opiniões dividindo as famílias e as conversas na pequena vila; em 10 de agosto de 1860, nova lei autorizou essa transferência da vila para a Barra do Mulato, na margem direita do rio Parnaíba, cujo fato se concretizou em 16 de julho do ano seguinte. Tinha, pois 16 anos de idade quando viu os comboios de mercadorias, móveis e utensílios seguirem em lombos de mulas e carros de boi, acompanhados por muitas famílias em suas montarias para a margem do rio Parnaíba. O rangir dos carros de boi e o trotar das cavalgaduras que desapareciam na curva da estrada traziam imensa dor à sua alma juvenil. Os que ficaram, inconformados tentaram resistir ao padre quando este embrulhou a venerada imagem de S. Gonçalo e levou consigo para a nova vila que fundavam, São Gonçalo Novo, hoje cidade de Amarante. Em pouco tempo, furtariam essa imagem nas caladas da noite, guardando-a em segredo, por vários anos, para somente restabelecerem ao seu antigo lugar quando foi recriada sua freguesia sob o orago de São Gonçalo da Regeneração.

Resignado, o jovem Raimundo Gomes prometeu lutar pela recuperação de sua comunidade decadente. Tratou de ocupar os espaços vazios, adquirindo a preços competitivos as propriedades dos mudancistas encantados com a nova povoação. Foi, também, naturalmente assumindo a liderança da povoação, que passou a ser denominada São Gonçalo Velho, assim como de todo aquele distrito. Alcançando a maioridade ingressou na guarda nacional, no posto de tenente, depois passando a tenente-coronel e coronel.

Em 26 de janeiro de 1872, casou-se com Thereza Maria da Conceição, filha de Policarpo Alves Teixeira e Clarinda Maria da Conceição, falecida prematuramente, sem deixar sucessores. Novamente, em 4 de novembro de 1873, contrai segundas núpcias com Antônia Gomes Baptista, filha de Miguel Lopes de Sousa e Raimunda Gomes Baptista, desse consórcio gerando 16 filhos, sendo 8 homens e 8 mulheres. Eram todos oriundos de distintas famílias daquele termo, sendo essa segunda consorte neta materna do vereador Serafim Gomes Baptista e de sua esposa Ignácia Alves de Jesus; e paterna de Cândido Lopes de Sousa e Cândida Mendes Vieira, esta filha do tenente-coronel Tomé Mendes Vieira[4], herói da Guerra da Independência e da luta de repressão à Balaiada, além de antigo líder político e primeiro presidente da câmara municipal de S. Gonçalo. Os filhos casaram-se nas principais famílias da região: Neiva, Nunes, Rego Monteiro, Mendes Vieira, Campos, Campelo da Silva, Castro, Soares e Pereira de Vasconcelos, formando uma extensa rede de parentela. Além de bem situar os filhos varões, para iniciar a vida profissional, cada filha ao casar recebeu um dote no valor de um conto de réis, algumas também recebendo casa residencial na vila de Regeneração, cujos bens foram chamados à colação no inventário.     

Na política, desde moço filiou-se à legenda do partido conservador, sendo nomeado 1º Suplente de Delegado de Polícia do 2º Distrito de Amarante, tendo por sede a sua povoação de São Gonçalo Velho, antiga sede municipal[5]. Nessa povoação, aparece ora como subdelegado, ora como delegado de polícia, assumindo, de fato, as responsabilidades pelo policiamento daquele distrito. Em 1875, foi indicado membro da comissão de socorros patrióticos, por ocasião da peste de varíola que grassou no Piauí[6], antecedendo à causticante seca de 1877. Em 4 de outubro de 1876, foi eleito Eleitor de Paróquia, com 678 votos. Foi também eleito vereador à câmara municipal de Amarante, representando o seu distrito. No exercício desses cargos lutou tenazmente pelo restabelecimento da autonomia municipal de sua povoação, que, de fato, teve restaurada a freguesia pela lei provincial n.º 751, de 26 de agosto de 1871. A emancipação política foi restaurada pela lei provincial n.º 896, de 23 de junho de 1875. No entanto, por oposição dos amarantinos somente foram cumpridas essas leis provinciais em 2 de dezembro de 1882 e 22 de janeiro de 1884, respectivamente, quando foi instalada a vila com o nome de Regeneração e assumiu o primeiro vigário, cônego Carino Nonato da Silva. Nos dois mandatos iniciais, cujos mandatários tomaram posse na nova vila da Regeneração, em 10 de outubro de 1883 e 8 de janeiro de 1887, o tenente Raimundo Gomes foi vereador da municipalidade, assumindo a presidência da câmara nos exercícios de 1884, 1885, 1886, 1887, 1888 e 1889. Outro denodado companheiro de luta foi o tenente Delfino José de Neiva[7], também abastado fazendeiro e comerciante, líder emancipacionista e vereador naqueles dois mandatos, assumindo a presidência dos trabalhos nos exercícios de 1883 e 1890. Naquele tempo, a câmara possuía as funções legislativas e executivas, além de algumas atribuições de judiciário, sendo, assim, o seu presidente, verdadeiro prefeito. As famílias Gomes e Neiva se entrelaçariam através do casamento dos filhos de ambos os líderes[8].

Em São Gonçalo Velho, o tenente Raimundo Gomes foi se constituindo em seu principal homem de negócios, fundando a empresa Raimundo Gomes da Silva & Cia, com loja de fazendas e gêneros do país e estrangeiro, exceto fumo, situada ao lado de sua residência, na Rua Bela, depois Rua Raimundo Gomes, em sua homenagem; mais tarde, com o restabelecimento da autonomia municipal e a expansão de seu comércio, abriu filial na Rua Estrela; em 1899, está com sua matriz situada na Rua Dois de Dezembro, hoje Av. Alberto Leal Nunes, na esquina com a Praça São Gonçalo, onde construiu seu casarão residencial com salão comercial na esquina. Expandindo seu negócio, adquiriu duas casas contíguas e, em seu lugar, construiu confortável casa residencial na Av. Des. Amaral, cidade de Amarante, com espaçoso salão comercial onde abriu filial. Por esse tempo, criou a firma Raimundo Gomes & Genro, constituindo-se em um dos maiores comerciantes de seu tempo, naquela região.

Os recursos auferidos na atividade comercial eram reinvestidos no comércio, na aquisição de terras e fundação de fazendas. No início da década de 1880, conforme se disse, com o restabelecimento da freguesia e da autonomia municipal de sua comunidade, de que foi líder inconteste, o tenente Raimundo Gomes da Silva atingiu o fastígio do poder. Estabeleceu uma oligarquia que dominou a política local por 50 anos. Assumindo a presidência da câmara municipal com sua instalação em 1883, permaneceu no comando da municipalidade até a queda do Império, em 1889. Com a Proclamação da República foi instado pelo governo provisório do Estado a aderir à nova forma de governo, fazendo-o sem a menor convicção, em sessão da câmara por ele presidida, às onze horas do dia 26 de novembro de 1889: “Depois de discutida a matéria, deliberou unanimemente a Câmara que aderindo à nova forma de Governo Republicano por estar mais ou menos convencida que será a única que poderá fazer a felicidade deste País”, anotaram na Ata da Câmara. Então, mandou publicar as proclamações nas principais ruas da vila e convocou os cidadãos da localidade para, às dezenove horas daquele dia, proclamarem “sete membros para tomarem a direção dos negócios políticos”[9] daquele município.

Com a Proclamação da República era intenção do governo provisório mudar o comando político das municipalidades para inserir no novo governo figuras republicanas ou apolíticas. Na prática, essa medida não funcionou porque não encontraram personagens políticas com aptidão para desafiar o poder dos velhos coronéis do antigo regime. Em Regeneração, apesar daquela convocação funcionou a velha câmara municipal com seus integrantes até à posse do Conselho de Intendência Municipal, em 20 de janeiro de 1890. Em 28 de janeiro, ainda realizaram uma sessão para passar, sob a forma de inventário, o comando administrativo da municipalidade e “os utensílios pertencentes à mesma”, bem como a importância de sessenta e oito mil, duzentos e quarenta réis (68$240) existentes em caixa, consignando a inexistência de débitos. No entanto, embora sendo nomeados e tomando posse quatro membros daquele conselho de intendência, por desinteresse não comparecem às reuniões, de forma que em 19 de março daquele ano, os tenentes Raimundo Gomes da Silva e Delfino José de Neiva tomam posse como membros daquele conselho. Por fim, com a exoneração do governador Gregório Thaumaturgo de Azevedo, em 4 de junho de 1890, substituído pelo vice-governador Joaquim Nogueira Paranaguá, o tenente Raimundo Gomes da Silva, que já fazia parte do conselho, assume de fato e de direito o comando do governo provisório em Regeneração, sendo empossado na presidência do mesmo, poucos dias depois, em 28 de junho. Para isso, exoneraram os membros mais antigos, como mandava a lei, sendo substituídos por pessoas de sua confiança. Voltava tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Aliás, essa continuidade não foi fato isolado, conforme lembrou o diplomata e escritor André Heráclio do Rêgo, em seu livro Família e coronelismo no Brasil: uma história de poder:

“O poder político, na transição entre o Império e a República, e ressalvando-se o período de Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto, permaneceria nas mesmas mãos, visto que se havia conservado a mesma organização rural. O centro da vida política, apesar de todas as limitações estabelecidas pela lei, teria continuado a ser o coronel. A diferença seria que esse fenômeno, que durante o Império manifestava-se na sombra, havia atingido a plena luz chegada a República”[10].

Foi eleito pela Assembleia Legislativa, para suplente do Tribunal Especial do Estado, em 1902, sendo reeleito em 1904.

No plano político estadual, o grupo político do coronel Raimundo Gomes não teve grandes pretensões, mas por algum tempo passou a garantir uma vaga na assembleia legislativa estadual, sendo eleitos os seguintes deputados: cônego Carino Nonato da Silva, na última legislatura do Império (1888 – 1889); na República, o capitão Osório José Baptista, para a Constituinte de 1892 e para as legislaturas iniciadas em 1892 e 1896; em 1898, para completar o quatriênio, em vaga extemporânea, foi eleito o cônego Francisco José Baptista, tomando posse em 1º de junho e permanecendo até o fim da legislatura. Era irmão do antecedente, ambos primos do coronel Raimundo Gomes.

No plano municipal o coronel Doca, como também era conhecido, assumiu o controle incontestável da política regenerense. Desde 1892, quando foi criada a Intendência e o Conselho Municipal, hoje correspondente a Prefeitura e Câmara Municipal, passou a eleger seus parentes e amigos para esses cargos. Para a Intendência, nas eleições de 1892, apresentou a candidatura de Tito Malaquias da Silva, seu empregado, gerente da filial de seu comércio situada na Rua Estrela; depois do mandato esse seu antigo empregado estabeleceu-se com taverna própria nessa mesma rua, onde também residia, vendendo todos os gêneros do país e estrangeiros, à exceção de aguardente. No pleito de 1896, o eleito foi seu parente Antônio Moreira Ramos[11], empregado público, também cunhado de Delfino José de Neiva. Em 1900, o coronel Doca apresentou seu nome ao eleitorado, governando no quatriênio 1901-1904. Em seguida, elegeu o genro Raimundo José de Neiva (“Seu Rosa”), farmacêutico, ex-adjunto de promotor público e ex-coletor das rendas estaduais, para os mandatos iniciados em 1905, 1909 e 1913. Para a sucessão deste, foi eleito o filho Joaquim Gomes da Silva, negociante, fazendeiro, que havia sido eleito vice-intendente nos três últimos mandatos do cunhado. Joaquim Gomes tomou posse em 1º de janeiro de 1917, falecendo em 5 de junho, sem concluir o mandato. Para completar o quatriênio foi eleito outro genro, Benjamim do Rego Monteiro, eleito em 10 de dezembro, com posse em 2 de janeiro do ano seguinte; era também negociante e farmacêutico licenciado. As eleições de 16 de novembro de 1920, representam um ponto fora da curva, com a assunção ao cargo de intendente do negociante Raimundo de Carvalho Rios, tendo por companheiro de chapa o fazendeiro João do Rego Monteiro, irmão de Benjamim do Rego Monteiro. Por fim, na sucessão de 16 de novembro de 1924, foi novamente eleito o genro Benjamim do Rego Monteiro, reeleito no pleito de 1928, esse último mandato interrompido pela Revolução de 1930. Interessante ressaltar a liderança de outro genro, o coronel Antônio José de Neiva[12], negociante e fazendeiro, que ocupou diversas posições, inclusive, delegado de polícia, juiz distrital, conselheiro e presidente do conselho municipal desde as eleições de 31 de outubro de 1892 até o final daquele regime, em 1930.

Em 1931, seu genro, o juiz Raimundo Campos foi nomeado pelo presidente Vargas, para interventor federal no Piauí, renunciando ao cargo antes de tomar posse, por incompatibilidade com um dos líderes revolucionários, o desembargador Vaz da Costa. A indicação foi por intermédio do ex-governador Mathias Olímpio. Mais tarde, nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí, pelo interventor Landry Sales, Campos novamente renunciou à indicação, permanecendo até seus últimos dias entre as comarcas de Valença e Amarante, ambas no entorno do termo de Regeneração. Inclusive, por influência sua o termo judiciário de Regeneração foi transferido para a comarca de Valença quando de sua judicatura, retornando à de Amarante quando ele foi para ali removido. Esse fato vai de encontro ao que afirmou a professora Liliane Faria Corrêa Pinto, de que “o coronelismo, guardadas as proporções generalizantes, tem uma constante quanto à manifestação de força de uma pessoa sobre outras, cujo poder está relacionado à posse da terra, ao exercício de cargos públicos ou profissões de destaque e às relações entre a localidade e os governos estaduais e o federal”[13].

No entanto, atendendo a novas diretrizes do Governo Provisório de Getúlio Vargas, foi extinto o Município de Regeneração pelo decreto n.º 1279, de 26 de junho de 1931, sendo o território anexado ao Municio de Amarante, na qualidade de distrito municipal. Os destinos desse distrito foram entregues para o agente distrital Benedito José de Neiva, filho de Antônio José de Neiva e, assim, neto materno do velho coronel.

Por outro lado, é importante esclarecer sobre a formação do patrimônio do coronel Raimundo Gomes, popularmente conhecido por “Coronel Doca”. Foi sua missão de vida a formação de sólido patrimônio, o controle político de Regeneração e a projeção de sua descendência. É fato incontroverso que fortuna não fica sem dono, às vezes apenas mudando de mãos. Bem estabelecido no comércio, durante toda a sua vida o Coronel Doca foi comprando o patrimônio daqueles que quiseram desfazer de seus pertences, seja por mudança de domicílio, seja por outras razões, às vezes adquirindo pequenas porções até formar um latifúndio[14]. Tinha plena consciência de que a preponderância no sistema político de sua época, infelizmente, estava fundada nas relações econômicas, ou seja, no patrimonialismo e em sua faceta mais notória, o clientelismo, a troca de favores. Com esse propósito, na margem oriental do rio Berlengas, pertencente ao antigo termo de Valença, depois passando ao de Elesbão Veloso, adquiriu diversas propriedades das famílias Ferraz, Burlamaqui, Arêa Leão e Silva Brito, entre outras, construindo casas, currais e aguadas para situar fazendas. Consta que, naquela região, amansava mais de mil bezerros por ano[15]. Analisando-se o segundo volume dos autos de seu inventário, processado em 1933, no termo de Regeneração[16], então pertencente à comarca de Valença[17], constata-se que foram inventariados os seguintes bens: fazenda Calubra, adquirida por compra em oito porções[18]; fazenda Serra Negra, havida por compra a Afro de Arêa Leão, Guilhermina Pereira de Arêa Leão e a Justina de Araújo de Arêa Leão; fazenda Buriti do Castelo, havida por compra a Afro de Arêa Leão e Guilhermina Pereira de Arêa Leão; fazenda Malhada dos Cavalos, havida por compra a Antônio Leôncio Burlamaqui Ferraz, Antônio Leôncio Pereira Ferraz, Elmira Nogueira Ferraz e Ney Ferraz; fazenda Lages, havida por compra a Raimundo Leôncio Nogueira Ferraz; fazenda Alagoa de São João ou Careta, havida por permuta com Eufrosino José de Moura.

No inventário também consta a descrição de outros bens de raiz: uma casa coberta de telhas, construção de adobes, com dois vãos e um corredor, currais e cercados de madeira, no lugar Atalaia, da fazenda Malhada dos Cavalos, avaliada em 400$000 (quatrocentos mil réis); uma casa coberta de palhas, construção de adobes, com três vãos, currais e cercado de madeira, na fazenda e lugar denominado Calubra, avaliada em 120$000; uma casa coberta de palhas, construção de taipa, com três vãos, na fazenda Calubra, lugar denominado São Pedro, avaliada em 80$000; uma casa coberta de palhas, construção de taipa, com três vãos, na fazenda denominada Serra Negra, avaliada em 30$000; e uma casa coberta de palhas, construção de taipa, com três vãos e currais, no lugar Calumbi ou Alegria, avaliada em 40$000.

Os semoventes foram declarados apenas 750 cabeças de gado vacum, avaliados em quarenta mil réis cada uma; 41 cavalos também avaliados em quarenta mil reis cada um; 54 animais entre éguas, burros potros e jumentos; 175 caprinos e 250 ovinos. Em inventários amigáveis, como foi o caso, não era incomum a declaração de apenas parte dos semoventes, para reduzir o pagamento de impostos.

No Município de Oeiras[19], foi descrita e avaliada a fazenda Riacho dos Bois, havida por compra a Menandro Vieira de Sá e Raimunda Maria de Sousa, no valor de 50:000 (cinquenta mil réis), compreendendo benfeitorias no lugar denominado Angelim.

No Município de Amarante[20], foram descritos e avaliados os seguintes bens: na cidade, uma casa coberta de telhas de boa construção, situada à Avenida Amaral, fazendo esquina com a travessa Leocádio Santos, tendo 23 metros de frente para o norte, com três portas e cinco janelas, com fundos e terreno murado para a Rua das Flores, constituída pela junção de duas casas antigas[21], compreendendo na referida casa uma armação de prateleiras envidraçadas com balcão, uma balança grande para armazém e 94 quilos (peso de ferro), avaliados pela quantia de um conto e quinhentos mil réis (1:500$000); uma casa (meia águas), construída de alvenaria e adobes, em um terreno de 13m de frente para o norte, esquina para o poente, coberta de telhas, à Rua das Flores, da mesma cidade de Amarante, havida por compra pela firma Raimundo Gomes da Silva & Cia., a Paula Batista & Irmão, avaliada em 150$000; na zona rural, uma posse de terras na fazenda Retiro, do valor de 33$000, havida por herança no inventário da falecida dona Ignacia Alves de Jesus; duas posses de terras na fazenda Boa Esperança, do valor de 201$980 havidas no inventário de sua primeira mulher dona Teresa Alves da Conceição; um terreno cercado de arame farpado, com mais de vinte tarefas de extensão, próprio para toda cultura, encravado nas terras da mesma fazenda Boa Esperança, lugar denominado Canto da Taboca, havido por apossamento quando devoluto, avaliado por 2:000$000; uma posse de terras na fazenda Muquilas, do valor de 75$000, havida por herança no inventário de sua primeira mulher dona Teresa Alves da Conceição, avaliada presentemente por 90$000; uma posse de terras na mesma fazenda Muquilas, do valor de 9$000, havida por herança do falecido Serafim Gomes Batista, avaliada por 10$000.

Na vila de Regeneração, foram descritos e avaliados os seguintes bens: uma casa coberta de telhas, à Rua Dois de Dezembro, hoje Alberto Leal Nunes, com 4 portas e 7 janelas[22], compreendendo uma armação de prateleiras, balcão e um armário velho, avaliada por 1:500$000; uma casa coberta de telhas, na mesma cidade, à Rua Oriental, com 4 portas e 4 janelas de frente para o norte, avaliada em 500$000; uma casa coberta de telhas de construção de adobes, com 4 portas e 3 janelas de frente para o nascente, tendo 31m, inclusive um terreno murado com direção ao norte, à Rua Bela[23], avaliado em 300$000; uma casa coberta de telhas, construção de adobes[24], com 3 portas e 2 janelas de frente para o poente, fazendo esquina para o sul com o beco 1º de Março, com 31m, inclusive um terreno murado em direção ao norte, havido por compra a Delfino José de Neiva e s/m, avaliada em 250$000; uma casa coberta de telhas[25], construção de adobes, com 3 portas e 2 janelas de frente para o norte, na Rua Oriental, com 11 metros de frente, limitando-se ao norte com outra casa do inventariado e a nascente com um terreno dos herdeiros de dona Victalina da Silva Neiva, havido por compra a ... Campelo da Silva, avaliado em 150$000; um terreno cercado no patrimônio municipal, próprio para toda cultura, no lugar denominado Mandu, com 600m, havido por compra a Zacharias Alves Teixeira e Manoel Isaac Teixeira, avaliado em 100$000; um terreno cercado, encravado no patrimônio municipal desta vila, à margem do riacho Mulato, com 350m de comprimento, lugar denominado Humaitá[26], outrora São Lourenço, avaliado em 150$000; um terreno idem, idem, no lugar São Raimundo, com 135m de comprimento, avaliado em 100$000; uma posse de terras no sítio Brejo[27], deste distrito de Regeneração, no valor de 50$000 e havido por compra a Severo do Rego Monteiro, avaliado em 50$000. Os bens foram partilhados amigavelmente entre a viúva, os filhos e alguns netos.

O coronel Raimundo Gomes da Silva, faleceu em sua residência, na vila de Regeneração, em 23 de fevereiro de 1933, com 88 anos de idade, sendo sepultado no cemitério local. Foi um típico coronel de nosso sertão, possuindo em casa o filho padre, conforme a boa tradição; o genro bacharel, juiz de direito; e outros farmacêuticos, comerciantes, fazendeiros e políticos. As mulheres da família, donas de casa exemplares, voltaram-se para as atividades religiosas, assumindo o Apostolado da Oração e responsabilizando-se pela catequese religiosa, preparo para o batismo, catecismo e a crisma. Em suma, preenchiam as atividades religiosas e sociais daquela vila, consolidando naturalmente amizades que redundariam, embora à sua revelia, em apoio político. Com essas notas sobre o coronel Doca e sua entourage familiar, preenchemos um importante capítulo sobre a cidade de Regeneração e o coronelismo no Piauí.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]

[2] Relação de todos os possuidores de terras do Piauhy, em 15.11.1762, pelo conselheiro Francisco Marcelino de Gouveia. RIGPI n.º 8. Teresina: IHGPI, 218. Pág. 254-354.

[3] Censo Descritivo de Oeiras, em 29.5.1763, pelo Pe. Dionísio José de Aguiar. RIHGPI. Teresina: IHGPI, 2017. Pág. 160-198.

[4] Foi biografado no segundo tomo de Piauienses Notáveis (Teresina; APL, 2023).

[5] Em ofício datado de 3 de julho de 1872, ele se reporta a fatos pretéritos praticados nesse exercício.

[6] Opinião Conservadora, 28.12.1875.

[7] Nascido na fazenda Chapada, do termo de S. Gonçalo, hoje Regeneração, em 1845, o tenente, depois capitão Delfino José de Neiva faleceu em 10.4.1916, na vila de Regeneração; era filho do Cap. Camilo José de Neiva Bastos, antigo vereador (1841 -1842) e de Marcelina Maria de Oliveira; n. p. do alferes João Luís de Neiva Bastos, natural de Portugal, ao que se supõe, diretor do aldeamento indígena de S. Gonçalo (1811 – 1813), vereador da vila de S. Gonçalo (15.7.1835), recebeu em sesmaria a fazenda Coité, e de Rosa Pereira da Conceição; n. m. de Manoel Alves Brandão, vereador da vila de S. Gonçalo e de Antônia Maria de Oliveira, residentes na fazenda Chapada.

 

[8] Delfino Neiva teve apenas dois filhos, Raimundo José e Antônio José de Neiva, ambos casados com filhas de Raimundo Gomes, respectivamente, Leonília e Lídia Gomes Baptista.

[9] Livro de Atas da Câmara Municipal de Regeneração, n.º 1, aberto em 10.10.1883, pág. 94-95.

[10] RÊGO, André Heráclio. Família e coronelismo no Brasil: uma história de poder. São Paulo: A Girafa Editora, 2008.

[11] Filho de Feliciano Moreira Ramos e Rolinda Joaquina da Silva, esta prima do coronel Raimundo Gomes da Silva (Doca). Na edição do livro São Gonçalo da Regeneração, cometi equívoco com a filiação desse prefeito, confundindo-o com um seu meio-tio paterno de igual nome.

[12] Irmão de Raimundo José de Neiva, ambos genros do Coronel Doca e filhos de Delfino José de Neiva.

[13] PINTO, Liliane Faria Corrêa. Coronelismo: uma análise historiográfica. Revista de História, Juiz de Fora, v. 23, n.º 2, 2017. Pág. 361-382.

[14] Os bens do inventário foram avaliados em 61:811$539 (Sessenta e um contos, oitocentos e onze mil, quinhentos e trinta e nove réis).

[15] Informação prestada por sua neta Maria das Dores Nunes, de saudosa memória.

[16] Era juiz distrital de Regeneração, Hermes Teixeira Nunes, 1º suplente em exercício; e escrivão de órfãos, Manoel Isaac Teixeira, parente da primeira esposa do Cel. Doca. Mais tarde, o primeiro casaria em núpcias diferentes, com duas netas do velho coronel.

[17] O juiz de direito Raimundo Campos, declarou-se suspeito, em razão de sua mulher ser herdeira. Por essa razão, em seu impedimento, despachou a precatória o juiz distrital de Valença, Francisco Martins de Castro e Silva. Era escrivão de Valença, Casimiro Augusto de Castro Veloso.

[18] Compradas duas posses a Afro de Arêa Leão e s/m Guilhermina Pereira de Arêa Leão; a Torquato José Rodrigues, Silvina Maria da Conceição, Emídio Luiz de Mesquita, Manoel Luiz de Mesquita, Justina Maria da Conceição e Cipriana Maria da Conceição; duas posses a Luiz da Silva Brito e Ana Maria Pessoa; a Ernesto de Carvalho Lima e Ana Alves Viana; a Cincinato de Arêa Leão e Justina Rosa de Araújo Leão; ao cônego Carino Nonato da Silva; e a Francisco José de Oliveira Neto.

 

[19] Em 1933, foi carta precatória requisitória de avaliação de bens para a comarca de Oeiras. Era juiz de direito Dr. Pedro Amador Martins de Sá e escrivão, Benedito Amâncio de Freitas.

[20] Em Amarante, a carta precatória foi despachada pelo juiz de direito substituto, cidadão Joaquim de Castro Ribeiro; era escrivão, José Maurício da Costa.

[21] As duas casas antigas foram compradas, uma pela firma Raimundo Gomes da Silva & Cia., a Paula Batista & Irmão; e a outra comprada pela firma Gomes & Genro a José Joaquim Alves Pacheco e sua mulher e a João Evangelista Barbosa de Carvalho. Limitava-se para o nascente com uma casa dos herdeiros do falecido José Ribeiro Gonçalves.

 

[22] Onde anos depois passou a funcionar o Hotel Central.

[23] Doada à filha Leonília Gomes Baptista, casada em primeiras núpcias com o capitão Raimundo José de Neiva; e em segundas núpcias, com o capitão Benjamim do Rego Monteiro, ambos intendentes municipais.

[24] Doada à filha Josefa Gomes Baptista, casada com o capitão João Ribeiro Nunes, comerciante, ex-vereador de Regeneração.

[25] Doada à filha Luzia Gomes Baptista, casada com Raimundo Pereira de Vasconcelos (Redondo), ex-prefeito de Regeneração.

[26] Hoje Sítio Muquém.

[27] Doado ao filho Gonçalo Gomes da Silva, mais tarde residente em Elesbão Veloso, onde deixou numerosa descendência.