Carta a meus avós

     [Whashington Ramos]

     Vós sois as únicas pessoas no mundo a quem me dirijo em segunda pessoa do plural. Morrestes há mais de três décadas, mas ainda sois muito especiais para mim. Respeito a todas as pessoas, mas meu respeito por vossa memória é o mais intenso, o mais alegre, o mais sagrado. De ninguém, guardo ressentimento. De vós, também, não; e nenhuma palavra amarga, nenhuma mínima rusga, nenhuma decepção.

     Nunca me mimastes, nunca me destes presentes caros; mas também nunca me dissestes palavras duras nem me dirigistes olhares acusadores. Os outros netos eram tratados da mesma maneira por vós. Passei férias em vossa casa, morei lá durante algumas semanas, quando era criança, e a ela ia sempre na minha juventude. Sempre me recebíeis com alegria, com afeto e com pequenos agrados como um pedacinho de rapadura ou um doce de casca de laranja, que eu degustava sentado àquela velha mesa, que me parecia indestrutível, entranhada do sentimento de eternidade.

     Vossa casa, ali na avenida Miguel Rosa, perto do cruzamento com a Joaquim Ribeiro, não existe mais. Agora, em frente onde ela ficava, passam milhares de carros e motos todos os dias. É uma barulho infernal de motores e buzinas, uma pressa desesperadora, uma agonia sem sentido. Mas, em mim, vossa casa ainda está viva, vossa casa em cuja frente não havia portas, só janelas. A entrada era pelo portão de madeira na lateral direita de quem, nela, penetrava. A gente defrontava-se, então, com dois caminhos a seguir: direto para o quintal ou à esquerda para a sala, onde ficavam a rede de tucum, que deixava marcas vermelhas em vossas costas, meu avô, e a mesa e as cadeiras. Dobrando à esquerda de novo, chegava-se aos quartos. Mas seguindo reto, ia-se à cozinha e virando à direita, chegava-se ao quintal também com suas laranjeiras e outras frutíferas. O banheiro era cercado por talo de coco, e, sobre uma pedra quadrada e bem limpa, tomava-se um refrescante banho de cuia.

     Vou guardar para sempre a presença de vossa casa no mais íntimo de meu coração. Vós  estais dentro dele também, é claro. Vós, minha avó, com vossa fala mansa e alegre e seus cabelos negros que nunca embranqueceram. Vós, meu avô, homem de poucas palavras, sempre lendo a Bíblia, mas sem praticar religião nenhuma. Aos dois, minha eterna gratidão e saudade.