O caminho permanece
O caminho permanece

Memória e consciência em tríptico sonetístico de inspiração camoniana

Reginaldo Miranda[1]

No tríptico que ora apresento, formado pelos sonetos Ao partir da terra em tenra idade, Do regresso e Do que fica, procuro equilibrar rigor formal, densidade ética e transfiguração poética na expressão de uma experiência pessoal. Longe de constituir simples exercício autobiográfico, o conjunto se propõe como meditação lírica sobre o tempo, o destino e a formação do caráter, inscrita conscientemente na tradição camoniana.

Do ponto de vista formal, os três poemas obedecem com rigor ao decassílabo heroico, com acentuação clássica na sexta e décima sílabas. A disciplina métrica, aliada a uma sintaxe elevada e a um léxico de extração clássica, funciona menos como ornamento do que como princípio ético da escrita, coerente com o tom estoico que atravessa o tríptico.

O primeiro soneto, rememorando a saída da terra natal, gesto que também inspirou Humberto de Campos em Miritiba, encena a partida inaugural como alegoria da vocação, em que a aurora, a estrada e a despedida materna se articulam num gesto de entrega ao fado. O segundo, Do regresso, quando minha mãe não mais existia, desloca o eixo emotivo para a experiência da perda: a ausência materna, sugerida por meio do silêncio e do gesto interrompido, enquanto a figura de meu pai surge como símbolo de permanência moral. Já o soneto final, Do que fica, cumpre função testamentária ao submeter conquistas intelectuais, profissionais e materiais a um crivo ético rigoroso, afirmando como legado apenas o “pensar, o agir e a consciência”.

Penso que o mérito maior desse conjunto reside na contenção expressiva: a emoção nunca se sobrepõe à forma, e a memória individual é constantemente elevada a plano universal. Assim, o tríptico alcança consonância entre a experiência vivida e reflexão moral, inscrevendo-se na linhagem da poesia que, à maneira de Camões, concebe o destino humano como exercício de medida, disciplina e lucidez.

Por fim, ofereço esse conjunto de sonetos à memória de minha mãe, Eunice de Miranda e Silva, cujo esforço maior e permanente motivo de orgulho foi o encaminhamento dos filhos pelas sendas da vida.

Boa leitura.

 

 

AO PARTIR DA TERRA EM TENRA IDADE

 

Era manhã, e eu, tenro, inda contemplava,

Largos confins que a aurora ia alumiar;

Do pobre burgo a sorte me convocava

A erguer meu passo e o mundo enfim buscar.

 

Alma infantil, que mal se conhecia,
Fitava a estrada, ao longe a se abrir;

Soou o carro, e já, na companhia
Da inquieta ânsia, ia eu de me partir.

 

Parte o veículo; minha mãe em pranto e dor,
Balança a mão, e eu, pela vidraça, aceno;
Despeço-me assim, envolto em terno amor.

 

E vou seguindo a voz que o fado intenta,
Ergo a esperança, embora a dor que acida,
Sigo a cumprir o rumo que me tenta.

                                     Teresina, setembro/1999.

 

                 DO REGRESSO

Voltei por estrada antiga, já sabida,
Que o tempo fez menor que a recordei;
A mesma terra, agora mais contida,
Revê no passo o homem que tornei.

 

A casa está; porém, nela se anida
Um silêncio onde outrora voz achei;
Ali persiste o pai, raiz erguida,
Guardando o chão que um dia abandonei.

 

Não vejo a mão que ao longe me acenava,
Nem ouço o pranto antigo na janela;
Só resta o amor que o tempo não levava.

 

Aceito, enfim, a perda que revela
Que o fado cumpre o rumo que intentava,
E sigo inteiro, embora falte ela.

                              

 

                DO QUE FICA

Não foi em vão o passo já cumprido,
Nem foi vazio o tempo em que caminhei;
Do duro mundo, em trato e exercício,
Algum saber mais claro recolhi.

 

Aprendi a pesar, no justo ofício,
A lei dos homens e o valor contido;
E a mente fiz morada do princípio
Que, em casa antiga, o exemplo me infundiu.

 

Se algo alcancei de nome ou de fortuna,
Foi menos pelo ter que pela vida
Regida à luz da reta disciplina.

 

Que fique, pois, da senda já vencida,
Não o que o tempo gasta ou desune,
Mas o pensar, o agir e a consciência.

                                

 

 


[1] Membro titular da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]