AMEAÇA SOBRE O PONTO E VÍRGULA

(MENACE SUR LE POINT-VIRGULE)

 AUTOR: ALEXANDRE DEMIDOFF
FONTE ORIGINAL: http://www.letemps.ch (jornal suíço Le Temps, Genebra. Sábado, 12 de abril, 2008)
TRADUÇÃO: VICTOR FIGUEIRA

 O sinal de pontuação é cada vez mais raro. Seria o sintoma de uma degradação da língua? O debate desencadeia paixão.

O ponto e vírgula está morrendo. E são legiões de puristas que assistem, consternados, a esta agonia. Ele seria demasiado difícil de ser utilizado - quando me autorizo esse sinal de pontuação, apanágio de autores maiúsculos, Flaubert, Charles Péguy, etc.? Ele seria também vítima do seu estatuto bastardo, nem vírgula, nem ponto. Enfim, a hora da aposentadoria fora soada para este soldadinho de chumbo cujo defeito é o de ter sido sempre demasiado distinto. Isso é o que anunciava o jornal online francês Rue 89, na sua edição de 24 de Março, em um artigo que se fundava sobre uma constatação formulada por Sylvie Prioul e Olivier Houdart no livro La ponctuation ou l’art d’accomoder les textes (Edições Seuil, que acaba de ser reeditado em formato de bolso).

“A imprensa o desleixa: na edição de 22 de dezembro de 2005 do jornal L’Humanité1 , por exemplo, nós só encontramos, para nossa maior surpresa, um só ponto e vírgula (refugiado no editorial)”, escreviam Olivier Houdart e Sylvie Prioul, respectivamente, corretor  do monde.fr2  e secretária de redação do Nouvel Observateur3 . O artigo do Rue 89 é uma pedra jogada no lago dos cisnes4 . Na última contagem, 25.000 leitores o tinham acessado. As reações abundam. O bibliobs.com5 , que abraça a questão, também tem uma afluência recorde. Patrão da rubrica cultural do Nouvel Observateur, o jornalista e escritor Jérôme Garcin constata: “O número de reações foi estupeficante. Nós somos um dos últimos países do mundo onde uma história de pontuação provoca debate”.

 
A lei da frase curta

Exagerado, este drama? Talvez não. Embora não devamos tocar o sino a rebate sobre a pequena urna funerária do ponto e vírgula. Contactado, Olivier Prioul nota que ele ainda esperneia. “Rue 89 exagerou. Aliás, como verificar a erradicação deste sinal de pontuação? A única certeza é que ele é raro e que é um sinal de pontuação próprio à escritura literária. Nos jornais, a lei é a da frase mais curta. No Le Monde, ela é fortemente recomendada aos redatores. Da mesma maneira, o uso do subjuntivo é mal visto. Então, pense bem que o ponto e vírgula faz nódoa!”.

É esquecer quanto ele é útil. O ponto e vírgula é uma paragem bem-vinda quando a frase se desenvolve em proposições sucessivas. Ele clarifica a sua construção; autoriza efeitos de estilo que são quase sempre efeitos de sentido; ele suspende e liga ao mesmo tempo, o cúmulo da polidez. Um exemplo literário, só para o prazer da pausa: “Eu me lembro que eu brinquei à volta desse monte de areia; há muito tempo; eu era tão pequeno que eu me distingo com dificuldade”.

Esse trecho do escritor francês Henri Calet é citado no livro de Sylvie Prioul e de Olivier Houdart. O exemplo mostra um possível uso do ponto e vírgula, o isolamento de um elemento, como um zoom, que não exclui uma fusão encadeada, uma maneira de passar do presente ao passado e vice-versa. Carícia de artista.

Demasiado sutil? Demasiado artificial? É precisamente a repreensão dirigida ao ponto e vírgula. O escritor suíço Jacques Chessex não é muito adepto dele. “Eu o utilizo muito pouco; no meu último livro apenas duas vezes. Eu prefiro a pontuação do relego, o ponto e a vírgula.” Jérôme Garcin defende a sua utilidade. “É um sinal de pontuação literário. Nos meus artigos para o Nouvel Observateur, quase não o utilizo. A frase deve ser curta. Nos meus romances, eu não concebo escrever uma página sem ao menos um ponto e vírgula. Ele introduz um tempo de leitura próprio à literatura, não à imprensa”.


“O piscar-de-olho do espírito”

Resumamos. O ponto e vírgula teria tendência a retardar o leitor. E seria, Oh! sacrilégio, a escolta obrigatória de uma frase extensiva, espécie proibida nos medias e na publicidade. Mas ele sobrevive, protegido por escritores. Assim como o filósofo e professor de letras genebrino Jean Romain. “Sim, eu o utilizo! Ele é o aliado da complexidade. O ponto e vírgula diz que o pensamento que decorre na frase não terminou; ele alerta o leitor, é o piscar-de-olho da inteligência”.

Será necessário, nesse caso, adotar uma política voluntarista relativamente ao ponto e vírgula? Velar à sua reprodução, como um certo comitê, hoje desaparecido, tentou fazer na França? “Eu não vou me engajar nisso” diz Jean Romain, que apela, apesar de tudo, desde há muito, à escola genebrina a retornar aos fundamentos da língua. “Seria necessário, desde logo, que os alunos fossem capazes de dominar a pontuação elementar, o lugar de uma vírgula, por exemplo”.

Acontece que o problema também se encontra aí: a pontuação se desregra, vítima da desenvoltura dos seus servidores. “Os editores não fazem caso e os professores não o dominam”, constata Jérome Garcin. Alarmista também, Jacques Chessex deplora a degradação da língua francesa. “Eu assisto, como vocês, à morte de uma sintaxe clássica que era tão bela quando ela era falada. Meus avós utilizavam relativos. A morte de uma língua, também é a morte de uma art de vivre. Entre si e si. Entre si e os outros”.

A extinção do ponto e vírgula seria um sintoma, entre outros, de um mal-estar na civilização? Sem ceder ao tremor de vozes, constatemos que a língua escrita se despoja da sua sutileza, do luxo do tempo para reflexão, esse bem inestimável. Mas que ela também se regenera, como o assinala o escritor e professor de Lausanne, Jérôme Meizoz. “A língua não deixa lacunas. Quando um sinal de pontuação desaparece, o vazio é rapidamente ocupado”.


Lágrima, depois rir

No início, o ponto e vírgula é uma lágrima. De chumbo, como a sua irmã mais velha, bem mais respeitada, a vírgula. Os tipógrafos o impõem por vezes a textos de onde ele estava ausente. Certas demonstrações de Pascal e Descartes beneficiam-se, assim, dos cuidados de editores que velam a marcar, graças ao ponto e vírgula, a articulação do pensamento, seu movimento. No século XIX, em Balzac como em Baudelaire, ele floresce. Mas para muitos é irrelevante. No entanto, com o passar do tempo a sua utilização se clarificou. O ponto e vírgula serve para separar as proposições de uma frase e para salientar a ligação que as une. Ele autoriza a frase em cascata. E acompanha a enumeração. Hoje em dia ele é, em primeiro lugar, um atributo literário. Nós o críamos a este estranho Inverno (esquecimento). Mas, graças ao SMS (Short Message System), ele conhece uma Primavera tão discreta quanto tumultuada. O ponto e vírgula tornou-se um olhar de soslaio. Esse smiley corre de um celular para outro. Ele tenta seduzir através de um sorriso, o que não estava previsto por Balzac. ; )


A arte no seu cume

O ponto e vírgula, quando imprime ritmo e simetrias: “Querem-no beijar, ele oferece os seus lábios; querem-no amarrar, ele apresenta suas mãos; querem-no esbofetear, ele oferece a  face; bater com pau, ele oferece o dorso; flagelar inumanamente, ele oferece os ombros; acusam-no diante Caifás e Pilatos, ele se dá por convencido; […]
Bossuet, Sermon pour le Vendredi Saint (Sermão para a Sexta-feira Santa).*

O ponto e vírgula dramático: “Porque a relação social é sempre ambígua; […] porque o meu pensamento aproxima pelo que ele exprime e isola pelo que ele cala; […] porque não me é possível, nem de me elevar até ao ser, nem de cair no nada, é preciso que eu ouça. É preciso que eu olhe à minha volta, mais do que nunca… O mundo, meu semelhante, meu irmão”
Jean-Luc Godard, Deux ou trois choses que je sais delle (Duas ou três coisas que eu sei dela).*

* Extratos do Traité de la ponctuation française de Jacques Drillon.

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NOTAS DO TRADUTOR:

 1  Jornal do Partido Comunista Francês
 2  Versão online do jornal francês Le Monde - www.lemonde.fr
 3  Semanário francês
 4  “L'article de Rue 89 est un pavé jeté dans la mare aux signes”. Nessa frase, o autor do artigo procede a um jogo de palavras, visto que os vocábulos “cisne” e “sinal”,são escritos em francês como “cygne” e “signe”, portanto homófonos.
 5  Site literário do novelobs.com da revista semanal francesa Le Nouvel Observateur