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No dia nacional da poesia, abro algumas páginas, a fim de celebrar a obra AFROFILIA do poeta Hélio Baragatti Neto, o qual prefere ser chamado pelo pseudônimo Hebane Lucácius. Afrofilia é o primeiro livro de poesias do autor, editada recentemente pela Multifoco, no Rio de Janeiro. Hélio Neto é poeta, professor de Língua Portuguesa e Literatura na Rede Municipal de Inhumas, tem Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás e ainda é músico, demonstrando um amplo envolvimento com instrumentos eruditos e africanos, o que resulta no casamento entre poesia e música aos moldes liricamente africanos.

Efetivamente não venho apontar os diversos talentos do autor, mas explicitar minha primeira leitura de sua obra poética. Inicio minha recepção de leitura a partir do jogo duplo do título que se refere a AFRO (África, africanidade), somando-se ao termo FILIA, de origem grega que denota atração. Assim, pode-se ter a exegese de uma África atrativa, África sedutora e sensual ou até mesmo uma fascinação do poeta pelas vozes africanas ou por elementos de afro-brasilidade, uma vez que na obra há uma tessitura lírica em torno de poetas como Castro Alves e outros banhados pelas vozes da negritude.

Ainda que em vários instantes se derramem um lirismo de sofrimento e vozes aprisionadas pela dor, parece-me que o objetivo do poeta consiste em pintar uma África múltipla e, por excelência plural no que concerne aos aspectos sócio-culturais, sobretudo quando se parte para um abraço altamente musical e colorido. O autor demonstra que a África não deve ser vista apenas pelos contextos de guerras, ditaduras e mazelas sociais. Ela pode ser cantada pela cultura e pela negritude, as quais marcam a identidade brasileira.

A fim de louvar essa terra multifacetada, o poeta escreve um conjunto de 49 (quarenta e nove) poemas que integram Afrofilia. Mencionarei alguns para conhecimento prévio do leitor, apenas como sugestão de tantos outros. A obra inicia-se com o poema LAMENTOS DE ÁFRICA e pela tessitura poemática parece ser um livro de lamentação, mas o leitor descobrirá, aos poucos, que lamentar possui a carga semântica de cantar e exaltar a terra mãe.

A África, como berço de nossa identidade, vai sendo costurada pelo lirismo um tanto subjetivo, um pouco objetivo, pelas mãos do jovem poeta. Quando digo jovem poeta refiro-me ao autor e não ao jovem aprendiz, pois o leitor percebe o largo conhecimento histórico sobre África, de onde se erige um leitor consciente no projeto estético da identidade africana que veste e unifica o povo brasileiro, sobretudo no que se refere aos estilos musicais africanos:

 

Óh! Amada irmã América, unamo-nos agora!

Pois, somos mais iguais do que se pensa,

Estamos mais juntas do que nunca,

No som da capoeira, do jazz, do blues, do samba e do maracatu,

O sangue de nossos filhos já se misturou,

E a mistura perpetuou-se ao longo das gerações,

Somos hoje uma só raça, um só povo.

(BARAGATTI NETO, 2013, p. 8).

 

 

A negritude gloriosa surge como marca confessional no lirismo do poema PRETO:

 

Sou preto do gueto,

Sou preto carvão,

Sou preto na pele,

Sou preto tição,

Sou preto na voz,

Preto no coração.

(...)

Sou preto na ginga,

Sou bom na mandinga,

Sou preto no som,

Sou preto na umbanda,

Preto de aruanda,

Sou preto do bom.

Sou preto,

Herdeiro dos filhos das tribos de África,

Descendente distante das hostes de Zumbi,

E, como tal, orgulho-me da minha raça,

Orgulho-me das marcas que ostento,

E do sangue guerreiro que nas veias carrego,

Sou preto,

E proclamo aos quatro ventos a minha negritude,

Tal qual um eterno quilombola.

(BARAGATTI NETO, 2013, p. 15).

                                              

Em A PRECE DO AFRICANO o poeta traja-se do lirismo intertextual, ao demonstrar sua recepção pela voz de Castro Alves: “Senhor deus dos desgraçados,/Escutai minha oração! /Senhor deus dos desesperados/Dai-me a vossa consolação!”, assim como o lirismo desvelado e social, no contato subjetivo e indireto com Os flagelados do vento leste, do cabo-verdiano Manuel Lopes: “Senhor deus dos flagelados, /A terra não mais produz, /Senhor deus dos desenganados, /É a fome quem me conduz” (BARAGATTI NETO, 2013, p. 17).

O poema CLAMOR pode ser duplo no próprio título (clamor e amor) e vem tangido em nau africana, recheada pelos sons de atabaque, berimbau, marimba, os quais, por excelência, fazem parte do cotidiano do poeta enquanto músico e pesquisador de literaturas africanas. O autor demonstra esse contato íntimo quando profere os versos, a saber:

 

Que façam tanger meu berimbau,

Vibrar minha marimba,

E ribombar meu atabaque.

Dá-me o grito Griot,

Da valentia Maconde,

Do misticismo Ioruba,

Da persistência Makhuwa,

Da sensualidade Swazi,

Da realeza Nagô,

Do canto Zulu,

Da melodia chope,

Do lirismo de Rongas e Senas.

(BARAGATTI NETO, 2013, p. 53).

 

Como o leitor pode constatar, o poeta evoca algumas raízes africanas pelo som de instrumentos que, se juntando ao ritmo e clamor do verso, formam a canção lírico-amorosa para e sobre a África. Em várias páginas nota-se um incansável trabalho em torno desses ritmos, instaurados por elementos como “a marimba, a timbila, o atabaque, o tambor, o ngoma, a piana, a xipalapala, o berimbau, a capoeira, o jazz, o blues, o samba, o maracatu, os msahos, a escultura maconde, o pau preto e a umbanda fazem clara representação da imensa riqueza cultural plasmada pelos negros”.

Outras vozes ecoam na poesia baragattiana no instante em que o poeta se debruça na confecção do poema TRÊS:

 

Salve! Senghor!

Viva! Agostinho!

Ave! Craveirinha!

Glória às três mais admiráveis vozes,

De África,

Em África!

(BARAGATTI NETO, 2013, p. 66).

  

Por meio da intertextualidade e citação, o eu-lírico enaltece nomes consagrados como o poeta moçambicano José Craveirinha, Léopold Sédar Senghor, o líder pró-independentista angolano Agostinho Neto, os quais aparecem como defensores da liberdade. Mais a frente desses poetas, Baragatti Neto dialoga com figuras intrínsecas às cenas literárias e políticas africana e afro-brasileira, a saber: o ex-presidente da República da África do Sul Nelson Mandela, o herói revolucionário brasileiro João Cândido, o poeta baiano Castro Alves, o importante líder negro Zumbi dos Palmares, dentre outras ressonâncias imprescindíveis para a compreensão de Afrofilia.

Ao longo da obra, o poeta traz para seu canto muitos personagens integrantes da história e cultura africanas, tais como: o Magaíza, o Velho Makhuwa, o Timbileiro Chope, o Maratonista Kalejin, o Maconde Encanecido, o Rei Nagô, o Escravo, o Chibalo, a Negra que perde sua filha, Mazule – o tocador de marimba, Kedy – o que castigou o tambor, Mário timbila – o flagrado pela guerra, e ainda o Velho Cravo – José Craveirinha e a Vera Micaia – Noémia de Souza, ou os nomes Léopold Sédar Senghor, Nelson Mandela, Agostinho Neto e João Cândido.

Por conseguinte, tais figuras ilustres brotam como encarnação do sujeito lírico para derramar seu aprendizado com um berço cultural chamado África, tornando-nos homogêneos e, concomitantemente, heterogêneos, dado o contexto de identidades, conforme também se denota na pluralidade étnica do povo africano, no instante em que o eu-lírico baragattiano traz à baila a encenação dos iorubas, bantos e nagôs.

Ler esta obra requer, além da penetração da cultura africana, uma pesquisa estética, abarcando as diversas vozes da lírica e do poema em estilo épico moçambicanos, o que faz de Afrofilia uma obra demarcada pelo hibridismo dos gêneros na literatura brasileira contemporânea.

Ao contrário do que muitos fazem em conclusões, aponto, como se fosse um mural de poesia, um dos belíssimos poemas, escrito em tercetos, onde o autor transforma substantivos pátrios em verbos de ação e reflexão, a fim de reafirmar a soma de identidades e da raça que nos legitima num berço-irmão denominado ÁFRICA. Eis o seu POEMA NEGRO:

 

Ao longo da trilha aberta,

A precisos golpes de xicomo,

Semeio minha poesia.

 

Deixo-a passar,

Deixo-a fluir,

Deixo-a africanizar-se.

 

Moçambicanizar-se,

Angolanizar-se,

Caboverdejar-se.

 

Argelizar-se,

Senegalizar-se,

Camaronizar-se.

 

Egipcizar-se,

Sudanizar-se,

Mauritanizar-se.

 

Etiopizar-se,

Ugandizar-se,

Nigerizar-se.

 

Permito que os ares provindos,

Dos ventos místicos de África,

Penetrem os poros do meu verso.

De modo que, sendo assim,

Ele, definitivamente,

Se islamize e se enegreça.

(BARAGATTI NETO, 2013, p. 86-87).

 

 Para saberem mais sobre o poeta e seus textos, visitem a página Recanto das Letras, procurando por Hebane Lucácius no link: <http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=77566>

 

E para quem quiser conhecer um pouco do músico e cantor, visite o link do Youtube, a saber: http://www.youtube.com/watch?v=KN_V6GpgHsg

 

 (Texto para Entretextos, publicado por Rosidelma Fraga, em 14 de março de 2013).