Adeus Carmem Costa

Carmem Costa, que ontem partiu para o Reino dos Esplendores depois de uma vida de luta e de reconhecimento abaixo de seu mérito, nasceu na cidade de Trajano de Moraes, interior do Estado do Rio de Janeiro. Muito pobre, trabalhou como filha de empregada doméstica e assim foi a sua infância, passada também dentro da religião protestante. Com sua mãe, cantava desde menina os hinos protestantes, embora muitos anos depois tenha feito um inesquecível espetáculo na Igreja São José no Rio de Janeiro, cantando antigas canções populares católicas. Desde cedo, ela guardou os ecos da religiosidade.


Veio para o Rio de Janeiro e por coincidência foi empregada na casa de Francisco Alves. A partir daí começa a oportunidade de aparecer como cantora. Também a ajudaram os compositores Henricão e Mirabeau, Namorou a ambos e o bicho pegou. Padeceu mas gravou boas músicas deles.


Capricorniana, de 5 de janeiro, Carmem Costa foi uma mulher marcada pela tenacidade e por uma tristeza que nunca saiu de sua voz interessantíssima, cinzenta, sem agudos nem vibratos, naturalmente lamentosa. Sempre lutou contra os preconceitos raciais e as dificuldades de um artista negro, lá pelos anos finais da década de trinta e na seguinte. E já perto da velhice, na década de 90, continuava a lutar publicamente por seus direitos junto à Previdência Social. Luta, aliás, pouco compreendida. Fez um requerimento original: ser tombada pelo patrimônio cultural. Cá entre nós, tinha razão.


Em certo período de sua vida foi (duas vezes)para os Estados Unidos, onde esteve por cerca de 10 anos, dando shows, cantando, defendendo-se como possível. Foi arrumadeira de hotel e se casou com um gringo. Voltou ao Brasil, aqui cantou e gravou. Nessa época seu grande sucesso foi Eu Sou a Outra, de Ricardo Galeno, no qual canta-se talvez pela primeira vez, a defesa da amante capaz da doação de um verdadeiro amor. Tese polêmica. Ela é também a protagonista de outra obra polêmica, cantada igualmente por Elizeth Cardoso: Eu Bebo Sim.
Carmem Costa não é uma cantora de voz forte ou com extensão. Sua voz é grave de certa forma com pouca cor, porém de timbre muito bonito, o que a faz cantar com a tristeza ancestral da raça negra oprimida e não propriamente com arroubos vocais. Seu senso de ritmo sempre foi muito alto.


‘ Em 1952, gravou com enorme sucesso popular a marcha Cachaça Não É Água Não, uma das campeãs do Carnaval daquele ano. Ainda em 1952, gravou a famosa e polêmica Eu Sou A Outra que diz: “ Ele é casado sou a outra na vida dele”. .. Essa canção do bom e saudoso Ricardo Galeno abriu polêmica na década de 50, época em que um canto consagrando a amante era uma heresia. Ela volta aos Estados Unidos em 53 e lá fica cerca de dez anos, buscando trabalho, correndo daqui pra li, divulgando a música brasileira com o seu canto. Em 1964, retorna aos Estados Unidos ao lado de Sivuca, onde faz apresentações interessantes. Volta logo depois para o Brasil e se apresenta em boites tanto no Rio como em São Paulo.


Uma das gravações mais bonitas da Carmem Costa pelos anos 70/ 80 foi a da famosa obra de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: “Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”... Outra característica importante de Carmem Costa é a identidade da escolha do seu repertório com a sua maneira de ser, os seus sentimentos, as suas vocações principais, a sua visão de mundo - ela uma expressão genuína de valores rítmicos, melódicos e temáticos da Música Popular Brasileira do século XX.


Merece nosso respeito e admiração. O que ora expresso.