A criação de uma poesia pura não tem sentido. Se realmente é poesia, sempre é impura, pois arrasta o vital do homem. O processo de cristalização do poético a que pretendem chegar os defensores da poesia pura, para obter um produto tão depurado como o mais puro corpo químico, somente consegue eliminar, juntamente com as impurezas, a verdadeira poesia. Não há outra explicação para o poético que a crença em um estado superior de vida para o homem, porém não uma vida além ou aquém da real, mas sim esta vida concreta que vivemos aqui, com os pés sobre a terra. A poesia está situada nesse “mundo superior” no qual acreditava Novalis e acerca do qual sustentava “que está aqui embaixo, vivemos nele e o percebemos estreitamente misturado à trama terrestre”. A autêntica poesia nos revela que não é um sonho aproximar-se desse estado superior do homem, e aspirar a viver nele.

    O dizer que a poesia se situa em um mundo superior parece confirmar o sentimento comum que nega ao poético vinculação com o social, melhor dizendo, com os problemas que preocupam o homem em determinada época. Os que assim pensam costumam deduzir que se a verdadeira poesia é manifestação exclusiva do ser individual, não poderá expressar as contingências do homem social. Já dissemos que toda verdadeira poesia está estreitamente vinculada com a própria vida do homem que a cria, e essa vida deixa de ser individual ao despersonalizar-se na criação, com o que se converte em exemplo de toda vida. A voz do poeta, ao expressar-se a si mesmo, é também expressão autêntica de seu tempo, no que tem de mais profundo, no essencial. O verdadeiro poeta é sempre atual, pertence à sua época. Pertence à sua época não na revelação do anedótico, do documentário, mas sim como representante das aspirações de um homem colocado em determinado instante do acontecimento. E, como representante desse homem, assinala um modo de existir autêntico, que não é outro que o viver poético, e nenhuma forma distinta de vida pode superá-lo, enquanto viver poeticamente significa realizar-se como ser, o que se resume na explicação muito cândida e direta que o poeta Francis Ponge deu da poesia: “É simplesmente um modo de viver feliz”. E ser feliz, é pura e concretamente realizar-se.

Aldo Pellegrini



    Por diversos caminhos o Poeta chega ao mundo inconfundível da Poesia. Um rumor de copas de árvores, o chapinhar do grande quadrúpede caindo na água indivisível; certo ulular do vento nas encruzilhadas ou o grasnido de alguma ave propícia à melancolia; aquele rumor de passos que se afastam – sempre, sempre! – nos avisa certeiramente que estamos pisando em terras da Poesia.

    Não sei se a Poesia deve situar-se no presente, no futuro ou no passado. Situa-se apenas no tempo, varrendo com as pueris antinomias que querem separá-la da vida, como se precisamente nela não estivessem contidas e resolvidas de antemão todas as reivindicações humanas, desde as mais elementares até as mais elaboradas e complexas. Fora Dela – fio de Ariadne - , o desespero, o fragor estéril das simulações, a cegueira que imobiliza dentro do Labirinto.

    ( ... )

    A Poesia segue projetando sua luz mortal e lacrimogênea; luz vivificante do devir humano dentro de si mesmo e não orientado para a conquista de novos metais cuja fusão dosificada estale assolando terras de cultura, tesouros anímicos penosamente acumulados, ceifando o mais precioso, o mais rutilante dos tesouros: a vida humana.

    ( ... )

    Querido Xavier, obrigado por teu livro, por teu país, realidades latino-americanas. Perdão se não soube expressar nossa cabal admiração; tu sabes ler entre linhas. Que a vida – a admirável, a pavorosa vida – continue desenvolvendo seus fios; amar é, afinal, uma indolência. Como não seguir nos lugares de perigo onde não cabem nem salvação nem regresso?

    Tanto pior se a realidade vence uma e outra vez e convence aos eternos convencidos, trazendo entre os braços verdadeiros despojos: o ferro e o cimento ou a foice e o martelo como argumentos definitivos para justificar a prodigiosa bestialização da vida humana.

    Esse mundo não é nosso.

César Moro


    Em minha infância vivi no campo e creio que a vocação poética nasce de uma espécie de sabedoria inconsciente para receber a mensagem fascinante das coisas; a música misteriosa do mundo. A infância é o momento inicial da poesia. Seu campo de cultivo.

    Por sua especial disposição de intuir que a realidade está carregada de segredos sem fim e que as coisas mantêm entre si as mais insuspeitadas relações sob suas aparências cotidianas, a infância mantém sua inocência primordial para passar para o outro lado do espelho. Seu universo ainda não está estratificado. É ainda fluido e incandescente como o universo da poesia. Essa sua atitude de assombro permanece diante de tudo quanto a rodeia é a mesma atitude da poesia em busca de uma resposta sobre a “abismática” natureza do ser.

    A diferença entre a criança e o poeta é que a primeira ignora a morte. É imortal.

    Ante a finitude da existência o Homem, por sua vez, pode cair na angústia, na resignação, ou então na rebeldia e no desafio da condição humana, como em Rimbaud, em Lautréamont, no Surrealismo.

    Porém, paradoxalmente, a consciência da morte não induz ao despojamento ou à renúncia, mas sim à mais funda raiz do desejo sempre estimulado pelo adeus infinito das coisas.

    [...]

    Pouco a pouco se toma consciência da poesia como processo de revelação. Uma ruptura com os estreitos limites a que são submetidos os seres, por ordem do utilitário, para lhes impedir uma fraternidade mais profunda entre si e o Universo. Ela suscita uma forma particular de conhecimento, ou seja, uma dimensão da existência. Em toda obra lírica, desde a febre das coisas, o tempo e o destino vão estruturando algo assim como uma cosmovisão particular em que o autor se instala em um reino próprio, como se o mesmo lhe estivesse misteriosamente destinado. Uma especial maneira de sentir e conceber nossas relações com as coisas; inconscientemente se impõem certos valores, certas preferências, certa maneira de ver, de eleger a grade ou o sol; assim, fora de todo propósito, se acaba por ter uma fauna e uma flora próprias, que são universais e ao mesmo tempo estranhamente diferentes de todas. Um inferno e sempre um paraíso perdido próprios. Países que mudam de forma e nos seguem como animais; as mulheres fantásticas ou fantasticamente reais que surgem a cada passo e dão à vida um tom insone. É impossível escapar daquilo que se conquistou nessa aventura, em que se tece o destino e em que talvez alguém ou algo escolha a si mesmo; tudo ficou para mim sob o signo do desejo.

    O poema nasce, para mim, de um impulso inconsciente fora de todo conteúdo intelectual prévio. Somente depois da reflexão o alcança e, em certo modo, o descobre.

    O poeta, diz Hölderlin, é o que corre até a catástrofe. Até qual catástrofe? À trágica consciência de nossa condição, instalados em uma realidade que não é a real e em um mundo infinitamente devorador.

Enrique Molina.




    A poesia não tem sido (nem pode ser) algo concreto, algo facilmente reconhecível “por todos e em qualquer circunstância”. Cada época – cada poeta – propôs sua maneira distinta de entender o poético e de praticá-lo. Houve inclusive poetas cujo tom de voz (e a própria estrutura que assumiram várias de suas peças) se diversificou com o tempo. Em poesia não há fórmulas de aplicação assegurada e vã toda “poética”. O prudente seria reconhecer que carece de denominador comum, que o próprio da poesia é essa ausência de denominador. Os únicos autores que conseguem ser fiéis a teorias e preceitos são os que repetem uma receita (com ou sem variantes) entrincheirados detrás de pilhas de retórica – quando não detrás de consignas vetustas do agitprop.

    Pelo que corresponde ao poema mesmo (a um dos muitos ou poucos que lemos), em ocasiões nos sentiremos tocados, nos invadirá um tipo de pequena revelação – incerta mas prazerosa. Contudo, também em tais casos não conseguiremos adjudicar significação precisa ao efeito experimentado. Isso é tão difícil como explicar as motivações de nossos namoros (com uma pessoa, um lugar, uma obra-de-arte). Com os poemas ocorre o mesmo que com nossos amores (que juramos “eternos”): é possível que apreciações e preferências provem ser duradouras; não é de se excluir, porém, o contrário.

    Lemos com prazer e admiração ensaios magistrais ou simples anotações breves sobre a poesia – em geral – ou sobre alguns poemas – em particular. Nos dizem, contudo, mais sobre o autor do comentário (sua sensibilidade, suas predileções íntimas, sua erudição, sua sabedoria) do que sobre a poesia ou os poemas tratados. Para mim uma análise crítica pode atribuir-se caráter “científico” somente quando se limita ao exame de giros de frase mais usados – a sutilezas fonéticas, a associações literárias ou outras fáceis de captar, a resíduos alheios não assimilados ou a outros elementos igualmente verificáveis.

    A crítica “impressionista” pode, por sua parte, ser também meritória, porém, poucas vezes acrescenta algo ao poema. Em todo caso, sua interpretação subjetiva – por mais que desperte a curiosidade e induza à leitura – não nos iluminará acerca do insólido e do atraente do poema, daquilo que o torna único.

    [...]

    Pelo que respeita às correções dos poemas, é normal que se recorra a elas quando se evidenciam defeitos de sintonia e interferência. Sua abundância ou ausência total dependerá de cada caso. O mecanismo que guia o estabelecimento do texto definitivo de um poema é tão sigiloso como todo o processo de sua criação. Suponho que não haverá inconveniente maior em aceitar – em quem capta o poema – a existência de um ouvido “outro” (não o seu ordinário) cujo papel é referendar o texto resultante, quando o encontre coincidentemente com a mensagem presumida, ou rejeitá-lo quando note tergiversação ou fraude. Sua sentença será – nessa instância, a única legítima – sem apelação.



Emilio Adolfo Westphanlen


    O conhecimento poético é o único que nos resta diante do progressivo aniquilamento da visão religiosa ou perante a dispersão do conhecimento científico. Os grandes sistemas filosóficos desapareceram. A filosofia analítica encontra-se em um “impasse”, daí que filósofos como Robert Nozik tentem encontrar uma via de saída. Quanto à fenomenologia e seus herdeiros: não há ninguém depois de Sartre. Seus sucessores são comentaristas de Heidegger, como Foucault e Derrida. E que dizer do marxismo? Converteu-se em uma escolástica universitária nos países capitalistas do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos (a moda já passou na Europa), enquanto no Leste é uma aborrecida ideologia estatal. Nas grandes religiões, a visão poética foi e é central; o mesmo devo dizer dos sistemas filosóficos do passado. Por isso, creio que o que pode dar um pouco de frescor espiritual a nossas vidas é o conhecimento poético. Não digo que a poesia possa substituir a religião ou a filosofia: digo que é a origem da religião e da filosofia. No assombro ante o Outro e os outros está a poesia: foi e é o gérmen, a semente primeira. Regressar a ela será regressar à origem.

    Uma relação análoga à que existe entre poesia e filosofia aparece entre a poesia e o mito. A poesia tem sido criadora de mitos, e foram os poetas os que converteram os mitos informes em poemas e obras-de-arte. Essa função da poesia não desapareceu em nossa época. A poesia tem rejuvenescido os mitos – Eliot em um extremo e, no outro, Joyce, para falar tão somente de poetas de língua inglesa, ainda que também se possa citar Rilke, Apollinaire e outros.

    [...]

    Antes de tudo: os mitos são realidades. O são de uma dupla maneira: em primeiro termo, por terem vida própria e, em seguida, por estarem, por expressarem, quase sempre de uma maneira metafórica e cifrada, dada situação e que corresponde a todo o grupo social. Por exemplo: a bomba atômica reintroduziu na consciência moderna o antigo mito da extinção do Universo. Nossa sociedade não é a primeira que teme o desaparecimento do mundo em um grande cataclisma. Recorde os astecas, os estóicos ou os cristãos do Ano Mil. Em quase todas as religiões figura uma revelação – um apocalipse – relativa ao fim do mundo. Esse fim pode ser definitivo, como no cristianismo ou no islã, ou cíclico, como no budismo e entre os estóicos. O assombroso é que a sociedade do progresso e da ciência, precisamente por meio da ciência e do progresso, tenha descoberto, por sua vez, a velha imagem da destruição cósmica. A diferença com o passado não é menos reveladora que a semelhança: para os antigos, a catástrofe confirmaria a verdade da revelação, enquanto que para os modernos a explosão nuclear nega as suposições de nosso mundo: a razão, o progresso, a ciência. Também é assombroso que os poetas tenham dito sempre o que agora descobrem os psicólogos e os sociólogos: a presença da violência mortífera, agarrada às dobras da alma humana ou nas entranhas da sociedade. Voltamos a sentir como os amigos, mesmo que pensemos de uma maneira distinta. Isso quer dizer que em nossa imagem do fim do mundo há uma fraude: foi uma visão religiosa e agora é uma possibilidade filha da ciência moderna e da violência ancestral do animal humano.

Octavio Paz




    A poesia, por meio da imagem, não encerra outra mensagem diferente da que apresentamos ( e jamais interpretamos ou explicamos) o mundo que nos rodeia, unido à própria subjetividade do poeta.

    A poesia torna a apresentar o mundo em sua assombrosa e diamantina realidade... Realidade que para ser totalmente apreendida exige a abertura de uma “sensibilidade radical” livre do fantasma engendrado pelo pensamento abstrato e a ideologia, parâmetros da atual sociedade, no pesadelo da História.

    A poesia solicita então uma visão renovada do mundo, uma relação ao mesmo tempo sábia e amorosa com a natureza, sem a qual toda mudança revolucionária se reverte em velhos servilismos, na reiteração disfarçada ou tangível da opressão do homem pelo homem.

    Entre nós, alguns porta-bandeiras repetem ainda as receitas e fórmulas unidimensionais do realismo socialista, ditando que a arte procede da burguesia... A poesia lhes desmente ao proclamar sua marginalidade e estranheza no intercâmbio mercantil, única tábua de valores respeitada pelo mundo moderno.

    A poesia recusa, portanto e sobretudo, a aprovação dos mercadores da cultura e, por isso, sua linguagem jamais será a das hierarquias obscurantistas de nossa época. É, pelo contrário, linguagem da criança ou do louco, do povo ou ninguém.

    Sempre na vanguarda de qualquer insurreição ou protesto, ele instaura a revolta do amor e da liberdade na sensibilidade sonâmbula dos leitores modernos, exigindo-lhes a qualquer custo mudar seu estado de lagarta ou crisálida em alada borboleta.

    Que o homem é algo que deve ser superado nos lembra o mais audaz pensador de nosso tempo e ergue aos quatro ventos o pendão da imaginação: estrela polar cuja luz traça o caminho para a humanidade na noite ilusória da época.

    A imaginação é o corpo divino em cada homem, repete a cada passo esse incomensurável visionário e poeta, o inglês William Blake, apontando-nos, por outro lado, o enigma sociológico-social de que toda repressão das artes imaginativas se traduz em erupção de fogo.

    Há violência onde se emascula a imaginação. Há sedição e pilhagem na república que expulsa ou sitia de fome seus artistas e poetas.



Raúl Henao