máscara
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           ROGEL SAMUEL

 

            Era a máscara de Cristo.

            Não sofredora, no Gólgota.

            Mas bela, altiva e majestosa face de Cristo.

            Morava na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, entre prostitutas, michês, ladrões, travecos e policiais.

            Eu o assistia, todos os dias.

            Sempre ali estava, em qualquer canto.

            Às vezes via-o caminhando para algum lugar, do nada para nenhum lugar.

            Sem saber, sem olhar,  se movia. Flutuasse.

            Era belo, figura do Cristo de Fra Angelico.

            Quando andava um rastro fétido no ar. Mistura de sujeira, fezes, suor e urina ressecada.

            Impossível saber se era moreno como um palestino, ou se pintado de sujeira, cinza e fuligem sedimentada na pele escamosa.

            Cabelos barbas sujos, longos.

            Nos olhos escuros profundidade e loucura mística.

            Vestia calças sobrepostas, camisas de mangas muito compridas, farrapos, tinha pudor do corpo escondido.

            E eu o alimentava diariamente.

            Não aceitava dinheiro.

            Quando se lhe dava dinheiro, aquilo permanecia lá, sem valia, sem valor, sem serventia, abandonado, o vento espapalhava pelo chão.

            Bebia? Nunca pude saber.

            Quando lhe trazia comida, estendia ele ambas as trêmulas mãos, grunhia algo em desconhecida linguagem, talvez uma língua arcaica, aramaico.

            Mas de alguma forma me olhava com amizade.

            O que eu sempre desejei era sentar-me ali, com ele, conversar, partilhar de sua companhia.

            Mas nunca tive coragem, como em outra época fiz com menino de rua, que levei para casa. Agora os tempos eram outros. A Praça tinha grande movimento, principalmente agora, cercada pela grade que a protege de nós, pedestres.

            E todos os dias, quando passava para almoçar na Cooperativa dos Vegetarianos da Rua Pedro I, dava eu uma volta para vê-lo, e para que me visse. Era um pacto, entre nós.

            Outras vezes voltara eu para ver se ele já tinha almoçado.

           

 

           Na última vez que o vi estava transtornado.

            Era a máscara da morte, pálido.

            Devia ter sido agredido por uma matilha de cães.

            As roupas em frangalhos, deixava aparecer o corpo sangrando e ferido de estocadas.

            A cabeça e testa rasgada, unhada.

            Parecia mortalmente doente e se via que voltava apenas para a última ceia.

            Nada comeu.

            A marmita permaneceu no chão, ao lado, onde a coloquei.

            Súbito um relâmpago quebrou o céu por cima de nós em grandes estilhaços como se rasgasse uma cortina de um ser de vidro gigantesco e o abrisse de par em par.

            Abri o guarda-chuva.

            As pessoas começaram a correr, aflitas, fugindo da chuva.

           

           Então Ele se levantou.

            Irradiava luz.

            E, levantado, começou a andar, lento.

            A chuva escorria por suas vestes.

            Andava devagar, muito devagar, sob a chuva.

            No meio da praça, voltou-se para mim e, pela primeira vez, se despediu com um gesto de mão. E eu pude ver a ferida na palma de sua mão.

            Desapareceu para sempre na esquina.

            Chovia mansamente.