Por Rosidelma Fraga


O leitor que não é obtuso e já é meu amigo, não deixará de ler e reler as minhas memórias de Machado e admitir que como se serviram “da tampa e do balaio”, usarei “a mão e a luva” para narrar... 


       Imagine o leitor, quantas vezes eu estive a virar as páginas de Machado de Assis no ensaio de traduzir o enigma de cada uma de suas narrativas ou um discurso que não fosse anfibológico e, por excelência, abarcasse a importância de Machado de Assis um século depois de sua morte. Frente a essa busca incomensurável, vejo-me diante de meu próprio espelho e creio que, para redigir sobre a relevância de Machado, devo atar as duas pontas do tempo, oscilando entre passado e presente, não mais com as ideias fora do lugar, mas com ideias fixas, ao arquétipo de uma faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, a fim de justificar em minha crônica mais que uma representação de um cânone literário chamado Machado de Assis. Não vi outra saída a não ser narrar em primeira pessoa os entrecruzamentos de Machado e a minha memória de suas obras.
Ao olhar no espelho das lembranças, posiciono-me frente ao seu conto Espelho e vejo-me refletida em sua narrativa, encarnando-me em Narciso. As palavras de um defunto vivo espelham-se em meus pensamentos que voam nas páginas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, A mão e a luva, Americanas, O apólogo, A cartomante e outras histórias. É nas linhas a seguir que o leitor saberá da união de minhas memórias com Machado, formando um encontro de mão e luva.
Saibas tu leitor, das memórias de uma professora de Mato Grosso aos subúrbios do Rio de Janeiro. Não importa o nome das obras de Machado, todas me faziam relembrar das páginas que li quando entrei na Rua da Alfândega, na Rua do Ouvidor e, pela imaginação, na Rua Matacavalos, justamente o ano passado na homenagem inexorável aos professores na Casa de Machado de Assis, no dia 07 de fevereiro. Não pense o leitor em desistir da narração. Subirei e descerei à história dos subúrbios sem fugir do tema e narrarei a minha surpresa diante da imagem de Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras.
Antes disso, não pude evadir. Ir ao Rio de Janeiro e não andar nas ruas por onde caminhou José Dias e outros personagens, seria como se ouvisse o Brás Cubas um século depois de sua morte com o sobressalto da ressurreição, tocando-me com a mão e a luva para dizer: “a leitora que é minha amiga” e está nas ruas que descrevi, quer voltar às pressas para Mato Grosso, “não faça isso querida, eu mudo de rumo”. Ao ouvir minha memória tocada pelo enigmático discurso machadiano que sobrevive nas páginas amareladas de cada obra, caminhei em direção à Rua do Ouvidor e da Alfândega. Ninguém poderia imaginar que uma professora do “lugar onde Judas perdeu as botas” trocaria a poesia visual do Pão de açúcar e o Cristo Redentor que silenciam os mortais por cenas lidas em Machado de Assis. Ninguém pensaria que as ruas pintadas por seus narradores despertariam assaz curiosidades e, sobretudo conduziriam uma curiosa leitora do interior aos livros da gigantesca Biblioteca Nacional eternizados no minuto de meu olhar diante da imensidão de livros de Machado e outras publicações que sonhei desde a adolescência e nunca pude roubá-los, por medo da condenação. A partir da coletânea A importância de Machado de Assis um século depois de sua morte, todos saberão o que Machado representa para cada professor de literatura. Não encerre a leitura. Entenderás tu, arguto leitor.
Com suas palavras poéticas, Guimarães Rosa permitirá à mão que aqui escreve atar as pontas do tempo que prometi ao leitor no início. Quiçá o Rosa tenha pensado que Machado de Assis, ao fundar a Academia Brasileira de Letras, em 1878, estaria se eternizando um século depois de sua morte, bem como já se imortalizava pelo conjunto de suas obras, uma vez que nos livros “as pessoas nunca morrem, ficam encantadas”. Mesmo com as páginas amareladas, o discurso de Machado resiste ao tempo e está “como um cão vivo” na minha memória que virou história e entrará para a História. Logo eu quem recebeu por dedicatória apenas as batatas, mas por ser uma professora mais que vencedora na caminhada incansável em prol da leitura e da arte de contar e casar histórias do excelso Machado ao leitor que agora, com fidúcia, deve estar sem palavras.
E tu leitor, não serás obtuso em discordar, que as pontas das minhas memórias sobre o significado de Machado de Assis puderam acirrar algumas ideias fora do lugar. Entretanto, tenho a audácia de escrever que as pontas do laço dessas ideias serão unidas pelas futuras gerações, juntamente com os outros noventa e nove textos que se unirão a essa crônica. Portanto, em louvor à imortalidade de Machado de Assis, bebo as palavras do crítico Maurice Blanchot, as quais adornam os meus laços discursivos, ao endossar o pensamento de que “a eternidade do escritor se traduz pelo fascínio do olhar sobre a obra que se direciona sempre a um eterno recomeço”. Por isso, junto esse ato de recomeçar às minhas memórias do tempo e ao meu “espetáculo” sobre Machado na velha e renovada salinha de aula, confessando o meu desejo de reescrever inúmeras histórias sobre Machado. Como o espaço é exíguo, amanhã darei um tema aos meus alunos: “Por que Machado de Assis não morreu?”. Darei a aula e na Academia Brasileira de Letras levarei outra história que será registrada pela Folha Dirigida aos leitores de todo Brasil. Se o salário de professor de Educação Básica não proporcionar a subida às escadas negras da ABL e falar na desejada tribuna, que importa? Nada será mais sensacional que a união de Machado de Assis e as minhas memórias eternizadas no livro que, após cem anos de civilização, será lido e relido porque livro não tem prazo de validade.
 
[Este texto (crônica ou não) está editado na coletânea de mesmo nome com as 100 melhores redações de professores premiados pela Academia Brasileira de Letras e Folha Dirigida – Rio de Janeiro – 12 de setembro de 2008, com revisão para a ortografia atual (2011)].