A festa do Huguinho
Por Raphael Cerqueira Silva Em: 15/12/2025, às 20H08
Ai ai... às vezes me meto em cada uma.
Na última terça, fui a um aniversário de criança — daqueles que começam no finzinho da tarde. “Coisa simples, só pra não passar em branco”, disseram os familiares quando me convidaram.
A vizinhança inteira sabe: não tenho simpatia alguma por criança nenhuma. Mas era a festinha do filho da Dona Câmara. E esta distinta senhora, como todo mundo também sabe, faz quitutes de se comer rezando. Então calcei os sapatênis, vesti a velha jeans e a camisa de cambraia, e saí pela sombra.
Da calçada, já se ouvia a molecada berrando.
Parei. Olhei. Cocei o cocuruto. Pensei, repensei — não fosse o bolo da anfitriã, teria recuado. Na escada, a cada degrau, o arrependimento me estrangulava a alma. Contudo, resisti: os cajuzinhos de Dona Câmara são melhores que as ambrosias pelas quais, dizem, os olimpianos lambiam os beiços — se é que os deuses tinham beiços.
Encontrei Huguinho trepado no sofá, um quepe ridículo cobrindo a vasta cabeleira. Toquei-lhe o ombro, desejei parabéns, entreguei o presente. Do alto de seus recém-adquiridos sete anos, ele me encarou. Franzindo a testa feito o Capitão Haddock, jogou o embrulho longe.
— Isso são modos, meu filho? — ralhou a mãe, sem saber onde enfiar a cara.
— Num gosto de roupa! — cuspiu o entojado, saltando do sofá e correndo desembestado para a copa, onde uns esfomeados atacavam os salgadinhos.
Dona Câmara pediu mil e uma desculpas. Soltei um resignado — e insincero — "criança é assim mesmo". Ela foi receber outros convidados; eu me juntei às senhorinhas que assistiam a reprise de Rainha da Sucata.
Mas foi na hora do “parabéns” que o bicho pegou.
O Braguinha, outra peste do bairro, cismou de subir na cadeira destinada ao aniversariante.
— Eu que vou soprar a vela!
— Não é seu aniversário, é do coleguinha — ponderou Dona Câmara.
— Eu quero ficar aqui e daqui não vou sair!
Dito isto, Braguinha cruzou os braços, sentou-se e danou a bater os pés no chão. Huguinho puxou e empurrou o menino, ameaçando:
— Vou enfiar meu quepe na sua cara de rato!
A mãe, aflita, pediu calma. Uma das senhorinhas, em vão, tentou ajudar. Ninguém conseguia arrancar o rebelde dali. Súbito, alguém sugeriu chamar o dono da casa — um mal-encarado com voz de tenor e dois metros de altura que mete medo na meninada. Porém, foram encontrá-lo escornado no quintal, refém dos cascos de cerveja.
Dona Câmara, salomônica, decidiu:
— Deixa esse moleque desaforado aí, meu filho. Vou pegar outra cadeira.
— Num deixo, não! Eu quero ficar aqui e soprar a minha vela!
E, com um pontapé, Huguinho desligou a JBL. Confesso: suspirei aliviado. Pelo menos aquele MC dos infernos não tocaria mais. Ah, que saudade da boa música que embalava as festinhas de outrora!
Mas o aniversariante foi além. Correu até o terraço e voltou puxando os primos — dois marmanjos que tocam o terror por onde passam.
Pronto: armada estava a confusão, como diria o outro.
O trio partiu pra cima do Braguinha que, agarrado à cadeira, resistia bravamente. De repente, a sala se polarizou: gente defendendo o lado da resistência; outros, o do dono da festa; e brotou até uma turma que, sem se posicionar, ajudava a botar fogo na fogueira.
Uma menininha espevitada correu em auxílio do Braguinha. Tadinha. Antes tivesse ficado quieta tomando seu guaraná. Levou uma bicuda do aniversariante, rolou para debaixo da mesa, onde ficou gemendo feito uma alma penada.
Um engraçadinho apagou a luz. A fuzarca, então, foi elevada ao cubo. Porque, como a casa de Dona Câmara é de fundos, àquela hora não se via uma réstia do poente. Teve tapa, pescoção, soco, empurrão, puxão de cabelo, cuspe, cascudo, gritos e xingamentos. Copos espatifaram, travessas saltaram pela janela. Docinhos voaram.
O bolo foi parar no quepe do Huguinho. Isso eu vi em detalhes: aconteceu justamente quando tive a — literalmente — brilhante ideia de acender a lanterna do celular.
Foi também mais ou menos nesse momento que Dona Câmara, armada com a vassoura, botou todo mundo pra correr. Todo mundo mesmo: vizinhos, as noveleiras da sala, a molecada, a parentalha — e até este pobre cronista.
Voltei, então, triste e resignado, para casa.
Sem comer um cajuzinho sequer.

