Busto do vaqueiro Raimundo Gomes na cidade de Caxias. Créditos: Kristiano Simas
Busto do vaqueiro Raimundo Gomes na cidade de Caxias. Créditos: Kristiano Simas

Reginaldo Miranda[1]

O recrutamento forçado era um terror entre as famílias pobres de nosso sertão e uma arma poderosa ao arbítrio dos governantes, desde o tempo colonial. Segundo Odilon Nunes, “no Piauí, como por toda parte, a classe mais visada era a que constituía a arraia-miúda, a ralé inerme, incapaz de reação: o caboclo, o mulato e o cabra (esse último, o resultado do cruzamento do negro com o mulato, conforme o dicionário da época). Era poupado o branco. Na primeira relação de recrutas que, ao acaso, se nos apresenta à mão, em 81 cadastrados há apenas 8 brancos. Todo o resto é composto de mestiços”[2].

Evidentemente, essa prática deletéria causava insatisfação entre os estratos mais baixos da sociedade, insatisfeitos com esse recrutamento e envio de seus filhos para distantes províncias, verdadeiro desterramento, sem falar nas constantes prisões disciplinares. Às vezes, também era utilizado o recrutamento forçado para punir adversários políticos, invadindo-se fazendas e casas para prender e desterrar quem lhes causava incômodos. Era uma infeliz arma a serviço do despotismo de governantes descompromissados com a causa pública. Era uma medida impopular, mas praticada comumente por toda parte, não somente no Piauí ou Maranhão.

Nessas circunstâncias, em 12 de dezembro de 1838, o vaqueiro piauiense Raimundo Gomes Vieira Jutaí[3], alcunhado pejorativamente de Cara Preta, conduzia uma boiada do padre Ignácio Mendes de Morais e Silva, vigário de Arari, no Maranhão, com destino a Parnaíba, no Piauí. No entanto, na passagem pela vila da Manga, no vale do rio Munim, teve sua marcha interrompida pelo subprefeito local, José Egito Pereira da Silva Coqueiro[4], que era adversário político do pároco. Sob a égide do recrutamento interrompeu a marcha, prendendo diversos jovens tangerinos que lhe auxiliavam na condução da boiada, inclusive um seu irmão, que seriam destinados ao serviço militar, fora da província. Raimundo Gomes, então, suplica às prepotentes autoridades locais para que os libertassem, vez que a prisão estava causando-lhe prejuízos e ao patrão. Foi tratado com desdém. Então, dar meia-volta, monta em seu bom cavalo de cela e sai a todo galope, prometendo que no dia seguinte estaria de volta para libertar sua gente.

Era homem de palavra. Também de coragem. Destemido rebento de nosso sertão. Cumprira o prometido. No dia seguinte, à frente de 9 vaqueiros, de armas em punho, em plena luz do sol, adentram a vila no trotar dos cavalos. Era esta defendida por 23 guardas nacionais, que debandaram com os primeiros tiros. Então, o valente Raimundo Gomes invade a cadeia, liberta os presos e lança um protesto contra os prefeitos e subprefeitos, manifestando-se favorável ao restabelecimento das prerrogativas dos juízes de paz. Foi o estopim da revolta. Era 13 de dezembro de 1838. Logo mais, temendo castigo militar, os 23 guardas-nacionais, inclusive dois ou três soldados de linha que existiam no destacamento, retornaram à vila e aderiram ao movimento rebelde[5]. “O movimento toma um outro aspecto. É a força mantenedora da ordem que se une aos provocadores da desordem: quer dizer que havia, portanto, um elo comum de aproximação entre os vaqueiros e os soldados”, conclui Astolfo Serra. Um ofício da autoridade local, coronel Henrique Pereira da Silva Coqueiro, comunicando a revolta diz:

“À treze deste mês apareceu na Manga um cafuz por nome Raimundo Gomes, acompanhado de nove homens, e, sem respeito às autoridades, arrombou a cadeia, soltou os presos”[6].

Logo em seguida, na vizinha povoação de Enjeitado, termo de Tutóia, Isidoro Carvalho, que era responsável pelo recrutamento local, envia 7 recrutas apreendidos ao prefeito de Parnaíba, no Piauí, José Francisco de Miranda Osório, pedindo-lhe que os conservasse na cadeia daquela vila, pois temia que fossem libertados violentamente, com fizera, há pouco um tal Raimundo Gomes. Atendeu Miranda Osório à solicitação. No entanto, quando retorna a escolta é surpreendida com a notícia de que o rebelde João Cardoso atacara a casa de Isidoro Carvalho e libertara outros 4 jovens recentemente recrutados. Ao mesmo tempo as autoridades parnaibanas recebiam preocupantes notícias de que os rebeldes se preparavam para assaltar a vila piauiense e libertar os recrutas locais. Conforme se vê, o brado de Raimundo Gomes recebeu eco e fazia seguidores.

O vaqueiro piauiense retirou-se “voluntariamente e sem violência alguma”, levando consigo oito granadeiras, 498 cartuchos e mais algumas armas e munições que apreendeu no destacamento local[7]. Foi para Chapadinha, em cujo caminho reforçou sua tropa com a adesão de muitos seguidores. Dali, em 22 de janeiro, liderando 180 homens, marchou para Tutóia, onde entrou sem resistência. Em seguida, dirigiu-se para Mariquita, distante apenas quatro léguas de Parnaíba, onde reuniu-se com a gente de João Cardoso, sob seu comando. Era sinal eloquente de que ousariam invadir Parnaíba. Nesse propósito, atravessam o rio Parnaíba, na fazenda Várzea, e pisam pela primeira vez, naquelas circunstâncias, o solo piauiense.

No entanto, Parnaíba não era uma localidade qualquer. O prefeito Miranda Osório tinha sob seu comando considerável tropa. Também, não era homem de tergiversar. Ao saber dos fatos partiu ao encontro dos vaqueiros rebelados, à frente de 120 praças de 1ª linha, guardas nacionais e demais força montada que pôde organizar.

Por outro lado, ao tomar conhecimento da força liderada pelo prefeito de Parnaíba, Raimundo Gomes torceu caminho e foi ocupar a Barra do Longá[8], algumas léguas rio acima, para onde seguiram parte montada em seus cavalos e o maior número navegando numa barca que encontraram ancorada no porto. Então, ao chegar à Várgea, soube Miranda Osório do destino dos vaqueiros insurretos, para onde seguiu depois de curto repouso. Assim, às 6 horas da manhã do dia seguinte, depois de 5 horas de marcha forçada, os surpreende em Barra do Longá. Era 31 de janeiro de 1839. Ataca violentamente o primeiro grupo que alcança em terra firme, supondo ser o grosso dos adversários, que, sem meios para resistir fogem ao primeiro recontro. Porém, a maior parte da tropa estava acampada na ilha do Meio, de onde o chefe rebelde viu seus liderados fugirem. Além da inferioridade de armas e ausência de formação militar não houve tempo para estratégias e reação. Em seguida, foi atacado o próprio Raimundo Gomes, que, embora resistindo a princípio, viu sua tropa debandar desordenadamente, precipitando-se sobre o rio em rumo do Maranhão. Morreram dois afogados. Ao alcançar a margem maranhense do Parnaíba, no lugar S. Paulo, tomam a estrada de Angico, perdendo, porém, toda a bagagem, 20 cavalos, 21 armas e deixando 3 mortos,  2 feridos e 18 presos. Nesta batalha, tendo conhecido seu antagonista escreveu Miranda Osório ao presidente da província, o Barão da Parnaíba:

“... esse tal Raimundo Gomes é um cabra negro, que nem ao menos sabe ler, e é este o herói que tem abalado uma não pequena parte da província do Maranhão”[9].

O historiador Odilon Nunes, faz reparo a esse julgamento de Miranda Osório, nos seguintes termos:

“Melhor teria dito mal sabe ler, pois talvez não fosse, de todo, analfabeto. Sem instrução regular (não encontramos notícia de que tenha tido, de fato, secretário), redigia, entretanto, suas cartas e ofícios, que eram escritos com letra esparramada, em que se via algo de indecisão. E admirável que tenha sido de todos o mais persistente, aquele que provocou a luta e o último a render-se”[10].

O presidente da província vai noticiando esses fatos ao governo central, dizendo das medidas tomadas e solicitando o auxílio necessário para o combate. Nessa altura, a revolta se fortalece com a adesão de outro líder maranhense que forma seu grupo na região de Coroatá e Itapecuru-Mirim, Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, por alcunha “o Balaio”, em virtude de tirar seu sustento da fabricação e venda de balaios. Consta que entrou na luta revoltado tanto pelo recrutamento de filhos quanto pelo defloramento de uma filha por um militar. Deu nome ao movimento, que ficou conhecido por Balaiada. Também os negros e escravos se rebelaram, liderados pelo negro Cosme Bentos das Chagas, que se autointitulava “D. Cosme, tutor e imperador das liberdades Bem-te-vis”. Porém, a falta de unidade e estratégia comum os enfraqueceu na luta contra as tropas legalistas. No Maranhão, tinha o partido liberal ali chamado Bem-te-vi, que a princípio fomentou e apoiou a revolta. No Piauí, além das camadas pobres e médias, esta última formada pelos vaqueiros, também apoiaram a revolta alguns graúdos que faziam oposição ao governo provincial. O movimento tem caráter diferente no Piauí, sendo liderado por parte da elite insatisfeita com o governo de Manoel de Sousa Martins, agraciado com o título de Barão, depois Visconde da Parnaíba.

Não se demora Raimundo Gomes em Angico. Ressabiado pela derrota em Barra do Longá, segue na companhia de três vaqueiros de sua confiança, atravessa o rio Parnaíba, pega veredas pelo termo de Piracuruca, alcançando a vila de Campo Maior, onde nascera para confabular com seus parentes e amigos. Hospedou-se com Joaquim da Costa Araújo, com quem mantinha correspondência. Nesta oportunidade, mantém interessante contato com Lívio Lopes Castelo Branco e Silva, de importante família local, que logo adere ao movimento e ocupa posição de relevo nas lutas que se sucedem. Depois dessa breve estada em sua terra natal, Raimundo Gomes retorna ao Maranhão, à frente de 50 homens, atravessando o Parnaíba no lugar Boqueirão. Era seu desejo vingar-se da derrota sofrida em Barra do Longá. Ao tomar conhecimento desses fatos o presidente da província repreende severamente o prefeito de Campo Maior, por ter deixado o líder rebelde transitar livremente naquele termo, ao que este defende-se dizendo que a visita fora imprevista e as chuvas torrenciais impediram a vigilância. Na verdade, as autoridades de Campo Maior eram simpáticas aos rebeldes. De Campo Maior saíram diversos líderes da rebelião, entre os quais: Raimundo Gomes Vieira Jutaí, o vaqueiro que liderou o movimento rebelde; Lívio Lopes Castelo Branco e Silva, o de maior ascendência social e política; João da Mata Castelo Branco e Francisco Lopes Castelo Branco, por antonomásia “o Ruivo”, os três últimos pertencentes à família dominante do lugar, sendo que os demais parentes que não aderiram explicitamente foram coniventes, fizeram vista grossa a toda a movimentação dos parentes, agregados e amigos.

Em fins de fevereiro, saindo da Chapadinha, “uma diligência de 13 soldados para o Mocambo a fim de prender a Francisco Ferreira, um dos sequazes de Raimundo Gomes, que ali se achava com bastante gente reunida, aconteceu ser ela atacada por uma guerrilha um tanto numerosa do dito Ferreira, dando em resultado a morte de um soldado de 1ª linha e quatro feridos, inclusive o comandante. Trinta homens dessa guerrilha atacaram ainda, em seguida, a casa de um certo Calixto, resultando o ferimento deste, a morte de um rapaz e a de um dos da guerrilha”.[11]

Em março, o prefeito da cidade do Brejo, coronel Severino Alves de Carvalho, foi batido pelos rebeldes, deixando 2 mortos e 10 feridos.

Por esse tempo, o prefeito Miranda Osório suspendeu o recrutamento em Parnaíba, para evitar desgostos. O mesmo fizera o subprefeito de Piracuruca, capitão José Rodrigues de Miranda, em face do aparecimento de “indivíduos armados e arrogantes”. Na localidade Matões[12], daquele termo, cerca de 40 indivíduos armados com facas, cacetes, terçadas e quatro ou cinco armas de fogo, enfrentam as autoridades e reagem ao recrutamento forçado. Os índios de Ibiapaba, no Ceará, recusam convocação para virem combater os rebeldes no Piauí, chamando Raimundo Gomes de “nosso irmão”[13]. Não há dúvidas, pois, de que o destemido vaqueiro piauiense fazia história e afirmava-se como herói popular.

O presidente da província do Maranhão, nomeia o capitão Pedro Alexandrino para combater os rebeldes naquela banda ocidental do rio Parnaíba. Foi este, porém, batido nas matas do Angico, depois de três dias de perseguição, rendendo-se ao chefe rebelde Antônio José do Couto Pinheiro, vulgo Mulungueta, na manhã de 22 de abril de 1839. À tarde foi assassinado com tiros, quando se dirigia ao aquartelamento dos chefes rebeldes; também, “o tenente-coronel João José Alves, que jazia molestado e quebrantado numa rede foi cosido a facadas e os três oficiais restantes, dois alferes de polícia e um ajudante de segunda linha, teriam a mesma sorte se lhe não valessem os seus próprios rogos, os pareceres em contrários dos rebeldes em disputa e o seu capricho sanguinário já satisfeito por então as duas vítimas”[14].

Com esse fato aterrorizante, as principais famílias e autoridades do Brejo, inclusive seu prefeito, abandonam suas posições e vão alojar-se em Parnaíba, no Piauí. Esse fato teve funda repercussão, dando confiança aos rebeldes, que em pouco ficaram senhores das vilas do Brejo, Tutóia, Miritiba, Iguará e Coroatá, no norte do Maranhão, abalando o moral dos legalistas. Logo mais, também senhores de toda a faixa ocidental do rio Parnaíba, desde o litoral até os confins dos sertões de Pastos Bons e ribeira de Balsas. Agiam em forma de guerrilha, sem combate aberto, mas sempre surpreendendo as forças legais em assaltos e tocaias. Por essa razão, queixa-se o comandante-em-chefe Antônio de Sousa Mendes ao Barão da Parnaíba:

“É tal o sistema de guerra desses ladrões, que nunca as nossas forças puderam vê-los e eram recebidas com fogo em todas as picadas de dentro das matas [...], e sendo perseguidos fogem desesperadamente [...] e logo depois voltam a seus postos.

‘Eu não tenho forças para tomar as estradas: bato-os, porém eles voltam. E quem me assevera que nestes termos eles não me reduzirão ao apuro?”[15]

Em 1º de julho de 1839, Raimundo Gomes se encontra entre os rebeldes que tomaram “a importante cidade de Caxias, ou o mais rico empório dos sertões do norte”[16]. Consta que tentou controlar a situação, pondo rédea nos mais afoitos. Era da mesma linha ponderada de Lívio Lopes.

Mais tarde, com a mudança de rumos no Maranhão, os rebeldes resolvem se concentrar nas matas de Curimatá e Egito, na estrada que vai do Estanhado, hoje cidade de União, para Barras, então pertencentes ao termo de Campo Maior. Foi uma estratégia de João da Mata Castelo Branco, que era influente naquela região. Nesse tempo foram vistos naquelas estradas os rebeldes Francisco Lopes Castelo Branco, por antonomásia “o Ruivo”, Ladislau, Branquinho, Adão Pinto, Antônio da Costa Campos, João Nunes e Florêncio. Organizavam-se para, sob o comando de João da Mata, atacarem o presídio da Boa Vista e se assenhorearem daquelas posições, cujas matas estratégicas eram ricas em água e boiadas, para a manutenção das tropas. Raimundo Gomes promete ao conterrâneo vir para esta trincheira à frente de 1800 homens. De fato, depois de perder suas posições no posto de S. Mamede, no Maranhão, não lhe restava alternativa, assim como a outros líderes rebeldes, senão transpor o rio Parnaíba em busca do território piauiense.

No entanto, as forças governistas acorreram para aquela região com todos os comandos, enfrentando-se dois mil guerreiros de cada lado, diferenciado pela disparidade de armas e estratégia militar em favor dos legalistas. O recontro deu-se em 7 de maio de 1840. Foi uma derrota completa dos rebeldes, “comandados pelo seu general em chefe Raimundo Gomes”[17], dispersando-se pelas matas, com muitas mortes. Porém, esses principais líderes[18] conseguiram transpor o rio de volta para o Maranhão. Derrotado, Raimundo Gomes toma a direção do Olho d’Água, depois de perder 500 homens, entre mortos, feridos e prisioneiros. Da força legal, além de não pequeno número de mortos, são feridos o coronel-comandante José Feliciano de Moraes Cid[19], o major Antônio de Sousa Mendes, o tenente José Luiz de Queiroz e 45 praças[20].

 Em seguida, Raimundo Gomes retorna ao Maranhão, à frente de mil homens, com o objetivo de atacar Miritiba. Contudo, o novo presidente da província do Maranhão, Luís Alves de Lima e Silva[21], futuro Duque de Caxias, manda dar-lhe combate em Ribeiro e Matões Grandes.

Por esse tempo, Raimundo Gomes caiu preso nas mãos de outro líder rebelde, o negro Cosme, que se autodenominava “D. Cosme, tutor e imperador das liberdades Bem-te-vis”. Aproveitou-se dele para fabricar pólvora, de que tinha excelente prática e ia fuzilá-lo se não tivesse alcançado a fuga. Esse episódio foi narrado, mais tarde, pelo próprio Gomes e é assim colocado por Ribeiro do Amaral:

“Foi sempre política do presidente, diz Dr. Magalhães, impedir a junção dos rebeldes com os escravos, indispondo-os contra os segundos, o que de certo foi uma felicidade para a província. Raimundo Gomes, que se achava preso na Lagoa Amarela em poder do Cosme, e que por este fora afinal sentenciado à morte, achou ocasião de evadir-se no dia mesmo em que, segundo ele depois narrou, devia das mãos daquele criminoso receber o castigo dos seus crimes: quis porém sua fortuna que nesse dia fossem atacados os negros que, como ele, só procuravam em precipitada fuga furtar-se à morte, e dali foi ele embrenhar-se na Miritiba”[22].

Em 1º de novembro, Raimundo Gomes delibera dirigir-se com toda a sua tropa para a vila do Rosário, também no Maranhão, então comandada militarmente pelo major Augusto César da Rocha. Esse movimento foi percebido pelo comandante militar do Icatu, que, no dia seguinte envia portador com mensagem a Rocha, “de que se punha em marcha para aquela vila a força rebelde da Miritiba, capitaneada por Domingos da Silva Matroá”; o portador chegou no dia 3 e logo “no dia 7, às oito horas da noite, teve ainda o major Rocha nova participação do comandante do Icatu, em que lhe informava achar-se também em marcha para o Rosário o facinoroso Raimundo Gomes”. De posse dessas informações, o major Rocha tomou todas as providências que estavam ao seu alcance, determinando algumas providências a serem feitas nos pontos que estavam sob seu comando, inclusive de recolhimento das embarcações para dificultar a travessia dos rebeldes; e oficiando à capital e as vizinhas vilas de Itapecuru-Mirim e Icatu, nesta última para que o mantivesse informado da movimentação rebelde.

De fato, às 2 horas da madrugada de 10 de novembro, o vaqueiro Raimundo Gomes entra com sua tropa na povoação de “Pai Simão”, tendo surpreendido o destacamento de S. Miguel, onde existiam 50 praças, armamento e munições. Ainda “da vila de S. Miguel, de marcha para a vila do Rosário”, envia Raimundo Gomes correspondência ao major Rocha, datada daquele dia, dizendo-se amante da pátria, da coroa e da religião católica; “e espero em V. Sª, como bom brasileiro que devemos nos reunir como brasileiro que somos, pois já basta de vermos correr tanto sangue brasileiro”; “pois não é de bem que desgraçamos a nossa pátria pela pátria alheia”; “eu acho-me com uma grande força à frente das forças de V. Sª”; “e esperanço Deus e na Nossa Mãe Maria Santíssima, que V. Sª nos havemos reunir”; “protesto com palavra de honra que não há de haver insulto, nem roubo, pois trago os melhores oficiais para me ajudarem a bater o despotismo e V. Sª, fará ver os brasileiros amantes do nosso sagrado partido”; assina “Raimundo Gomes Vieira Jutaí, comandante em chefe das forças Bem-te-vis”[23]

Tendo recebido esta correspondência às 17 horas daquele dia, o major Rocha, por medida de precaução, responde incontinenti a Raimundo Gomes, que esperasse a resposta do pedido de anistia ali mesmo em “Pai Simão”, conservando-se pacífico, até que o presidente da província chegasse de Caxias, ou desse alguma providência sobre eles; acrescentou que mandaria o necessário alimento para toda a sua gente.

No entanto, no dia seguinte, ainda “em marcha”, assegurou Raimundo Gomes que não haveria “assassinos e nem roubos” e as tropas se conservariam “debaixo da boa ordem”. Em nova resposta esclareceu o comandante militar que poderia entrar, porém, depondo as armas e “entrando em porções, porque deste modo, estou persuadido, de que não quer outra cousa mais do que a união brasileira, único fim a que nos propusemos, para assim podermos melhor sustentar o nosso Monarca o Senhor Dom Pedro Segundo, e nossa Santa religião”[24].

Nessas circunstâncias, naquele mesmo dia 11 de novembro, Raimundo Gomes chega com sua tropa às portas da vila do Rosário, sendo, porém, intimado pelo comandante do primeiro ponto de guarnição, capitão Fernando César Pereira de Castro, a que fizesse alto, não podendo entrar na vila armado, sob pena de abrir-lhe fogo. Para segurança da vila, às 23 horas daquele dia, chegou um vapor com 120 praças. No dia seguinte, seu capitão intimou os rebeldes a se decidirem, pedindo esses algum tempo para pensar. É que faltava confiança de parte a parte. Não acreditavam os legalistas que Raimundo Gomes quisesse, de fato, render-se em benefício da anistia concedida pelo governo central, desde o último mês de agosto. Por outro lado, estava viva na lembrança dos rebeldes o suplício e morte feita a alguns dos seus que caíram nas mãos de comandantes das forças legais.

Em meio a esse clima de desconfiança, retorna Raimundo Gomes com os seus comandados à Miritiba. Para ali foi mandado o capitão Tomás José Pereira, com 80 soldados, a fim de juntamente com a força local dar-lhe combate. No entanto, permaneceu Raimundo Gomes firme como sempre e muito trabalho ainda daria se a luta continuasse, mas estavam todos cansados, de ambos os lados. Finalmente, em 15 de janeiro de 1841, à frente de 700 vaqueiros e lavradores, inclusive de seu fiel amigo o velho Domingos da Silva Matroá, depôs as armas e apresentou-se ao presidente da província e comandante das armas do Maranhão, coronel Luís Alves de Lima e Silva, que foi pessoalmente encontrá-lo em Miritiba[25]. Foi o primeiro que começou a luta e o último a render-se, saindo honrado do campo de luta. Como consequência, seguiu com aquela autoridade para a cidade de S. Luís, onde chegaram no dia 18, com o compromisso de ausentar-se da província por oito anos, “para o que já assinou termo no Juízo de Paz do 1º Distrito”. Ao todo, naquele mês depuseram as armas cerca de 2.500 rebeldes, tendo fim a Balaiada.

Esse mesmo episódio foi narrado pelo escritor Domingos José Gonçalves de Magalhães, depois agraciado com o título de Visconde de Araguaia, que secretariava aquela autoridade, em seu livro A Revolta. No entanto, ao contrário do seu chefe que tratou as lideranças rebeldes com respeito e alguma admiração, Magalhães de forma apaixonada, parcial e externando todo o cego preconceito da época, disse:

“Dali seguiu o presidente Duque de Caxias para Miritiba, onde se embrenhava Raimundo Gomes, e por uma escolta o mandou buscar a sua presença. Insignificante era sua figura: quase negro, a que chamamos fula, baixo, grosso, pernas arqueadas, testa larga e achatada, olhar tímido e vacilante, pouco atilado de entendimento, voz baixa e humilde, nenhuma audácia de conspirador; e posto fosse o chefe dos sediciosos, mais obedecia do que mandava e nunca marchou à frente dos seus em momento de peleja e na retaguarda se conservava, prestes sempre a fugir; nem foi de todos o mais ladrão e cruel, antes, comparado a outros parecia humano”[26].

Ora, ninguém em sã consciência pode negar que o vaqueiro Raimundo Gomes, tinha carisma, capacidade de liderança, identidade de classe, senão jamais teria convencido seus patrícios a pegar em armas e segui-lo. Chegou a liderar pessoalmente três mil homens, de armas em punho contra os governantes de duas províncias. Embora pudesse ser tímido, como quase todo sertanejo, de voz baixa, pausada, era audaz, bom de entendimento e sabia conspirar, assim como fazer amigos; pela sua falta de formação militar e pela disparidade de armas e munições, evitou o confronto aberto, de frente, preferindo a estratégia do ataque surpresa, sistema de guerrilha, assim como fizeram os outros líderes; no entanto, desse depoimento podemos perceber o tipo físico do nosso vaqueiro: moreno, baixo, grosso, pernas arqueadas, testa larga e achatada. Certamente, nesse aspecto há verdade, objetividade, no mais sendo subjetividade, concepção do autor, que externou o preconceito da épica.

Raimundo Gomes Vieira Jutaí[27] nasceu cerca de 1798, no termo de Campo Maior, Piauí, “filho dessa raça cruzada de índios e negros”, “criado no campo entre o gado que pastoreava, prestando a sua faca às vinganças próprias e alheias, leigo nas letras humanas”[28]. Esse conceito, o escritor Astolfo Serra coloca entre aspas dizendo ser extraído de documento contemporâneo. Para Carlota Carvalho, tratava-se de “um administrador de fazenda, homem de reconhecida probidade e merecedor de toda confiança para depositar na mão dele o valor monetário das boiadas”[29]. Segundo José Ribeiro do Amaral, “era parente bastardo” e “antes do rompimento” fora “digno guarda-costas” do “subprefeito José do Egito”, que lhe prendera os recrutas, na Manga do Iguará[30].  

Para Domingos de Magalhães, “Raimundo Gomes, o vaqueiro assassino, converteu-se em chefe do partido Bem-te-vi”[31].

Inobstante o conceito social de que gozava o vaqueiro na sociedade sertaneja, desde as primeiras notícias da revolta da Manga, foram seus protagonistas tratados como gente “da ralé mais ínfima”, “da última ralé da sociedade”, “da mais baixa ralé”, “do proletariado”, “das massas indisciplinadas”, “das classes inferiores”, “homens embrutecidos e ignorantes”, “um bando de miseráveis manchados com roubos e assassínios”, etc.; e seu líder Raimundo Gomes “um miserável baldo de tudo”, “homem de cor assaz escura”, “um desgraçado vândalo”, “um insignificante aventureiro”, “malvado”, “ignorante”, “analfabeto”, “cafuzo”, “mestiço”, “ladrão”, “assassino”, “criminoso”, etc.

Ora, Raimundo Gomes era semialfabetizado como a maioria dos fazendeiros de seu tempo, sabendo, porém, ler e escrever sofrivelmente, conforme se depreende de suas correspondências. Certamente, também tinha conhecimento das operações aritméticas, pois levava e comercializava boiadas para o seu patrão. Na qualidade de vaqueiro, era remunerado pelo sistema de “sorte”, sendo que de cada quatro crias nascidas uma era dele. Logo, de 100 bezerros ele tinha 25, constituindo-se, assim, em pequeno fazendeiro. Quem tem familiaridade com o sertão sabe que quase todo vaqueiro é também um pequeno fazendeiro, por cuja razão o vaqueiro sempre ocupou uma escala social intermediária entre o rico patrão e o pobre lavrador. Não é empregado, mas sócio do patrão nos lucros da fazenda, em cuja parceria o patrão entra com as matrizes bovinas e o vaqueiro com o trabalho.

O prestígio de que gozavam os líderes rebeldes era tamanho entre as camadas sociais, que, em 29 de agosto de 1840, tendo havido na vila de Viana, “um Te-Deum”, pela exaltação de Sua Majestade Imperial, “a par dos vivas ao nosso Monarca, houveram vivas ao Balaio, Raimundo Gomes e outros malvados!!”[32].

Em síntese, a Balaiada foi uma rebelião de massas, disse Astolfo Serra, onde se levantaram cerca de onze mil camponeses unidos em seu espírito de rebeldia contra os desmandos da época. Uniu “elementos os mais heterogêneos, vindos das mais ínfimas camadas sociais”, “criaturas anônimas dos campos e das cidades, das vilas abandonadas e das senzalas, das casas de farinhada e dos canaviais, dos chapadões e dos currais, toda a vasa fermentada e indócil que de um dia para o outro, surge arrebatada, fanatizada, e em estranhos arremessos de crimes e heroísmos. Não sei porque continuar a caluniar essa gente através da história se nela um impulso patriótico se manifesta”[33].

Segundo Astolfo Serra, “de tudo isto que aí fica resta-nos uma conclusão: e é a de que o vaqueiro Raimundo Gomes, primeiro chefe dos balaios não fez desordem pelo gosto do crime, por instinto primário de banditismo”; ao contrário, “cansado de sofrer injustiças de todos os lados resolve com a sua agressividade de homem inculto, reagir por si mesmo, já que os mantenedores da ordem, as autoridades da época se fizeram os camartelos de todas as injustiças sociais. (...). Há na alma desses milhares de sertanejos um quixotismo rude, primitivo, mas, também, capaz de grandes lances de heroísmo e sacrifício”[34].

A maranhense Carlota Carvalho, num rasgo de revisionismo apaixonado, assim se expressou:

“Guilherme Tell e Raimundo Gomes, o lendário pastor suíço e o vaqueiro do padre Inácio Mendes, irmanaram-se nos gestos de altivez e decisão. Como Arnaldo Melchtal, Raimundo Gomes Vieira ‘abriu uma rua à Liberdade’.

‘Na memória dos vindouros perdurará o exemplo. E naquele sertão, nas noites trevosas, nos rugidos das tempestades, ao clarão fugaz dos relâmpagos supõem ouvir o tropel do cavalo do destemido vaqueiro. Raimundo Gomes cumpriu um dever de cidadão e usou um direito concedido pela Natureza. Reagiu ao despotismo”[35].

Com essas notas trazemos à baila o vaqueiro Raimundo Gomes Vieira Jutaí, realçando seu papel na revolução social a que se denominou Balaiada. Foi um vaqueiro piauiense que teve a capacidade de unir a sua classe e outras que se irmanavam no sofrimento e na opressão para dar um brado de liberdade no Meio-Norte brasileiro. Sua luta fez eco, fazendo cair governantes e ruir as estruturas do sistema opressor de antanho. Dessa luta nasceu o conceito de povo, a identidade piauiense, maranhense, brasileira, de pertencimento à terra comum, trazendo visibilidade para a gente pobre do sertão, que não era dona de grandes cabedais. Por isso houve toda uma luta para calar essa gente e uma escrita para desqualificá-la, somente sendo aos poucos reabilitados para a luz da história depois de século de sua luta. Raimundo Gomes Vieira Jutaí, merece figurar nessa galeria de figuras de nossa terra, que se notabilizaram por algum relevo de personalidade.

 

 


[1] Advogado e escritor. Membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

[2] NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. 3º vol. Coleção Grandes Textos. Teresina: FUNDAPI-FCMC, 2007. Pág. 21. Casa Anísio Brito. Livro 163. Doc. 8.5.1840.

[3] Aparece também Jutahy.

[4] O Despertador, 8.7.1852. O Publicador Oficial, 29.12.1838.

[5] AMARAL, J. R. do. Apontamentos para a história da Revolução da Balaiada. 1839. Vol. I. Pág. 27 e segs. In: NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. 3º vol. Coleção Grandes Textos. Teresina: FUNDAPI-FCMC, 2007. Pág. 25. SERRA, Astolfo. A Balaiada. 3ª Ed. Parte II. Rio de Janeiro: Dedeschi, 1948.

[6] O Publicador Oficial, 29.12.1838.

[7] O Publicador Oficial, 1838.

[8] Hoje povoado do município de Buriti dos Lopes, então termo de Parnaíba.

[9] Arquivo Público do Estado do Piauí. L. 152. Doc. 6/2/1839. L. 153. Doc. 22/4/1839 e 30/4/1839. In: NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. 3º vol. Coleção Grandes Textos. Teresina: FUNDAPI-FCMC, 2007. Pág. 26.

[10] NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. 3º vol. Coleção Grandes Textos. Teresina: FUNDAPI-FCMC, 2007. Pág. 26.

[11] SERRA, Astolfo. A Balaiada. 3ª Ed. Parte II. Rio de Janeiro: Dedeschi, 1948. P. 158.

[12] Hoje cidade de Pedro II.

[13] NUNES, Odilon. Op. cit. P. 28-31.

[14] SERRA, Astolfo. A Balaiada. Op. cit. P. 160.

[15] Arquivo Público do Piauí. L. 153. Doc. 11/12/1838 e 15.12.1839. In: NUNES, Odilon. Op. cit. P. 86.

[16] Almanak Histórico de Lembranças Brasileiras, 1863. A Revista, 13.6.1850.

[17] AMARAL, José Ribeiro do. História da Revolução da Balaiada na Província do Maranhão. 3ª Parte. Maranhão: Tipografia Teixeira, 1906.

[18] Retornando Francisco Lopes Castelo Branco, por antonomásia “o Ruivo”, para reanimar os remanescentes foi traído por três desertores, que indicaram sua posição, sendo assim preso no lugar “Salobro”, pelo Tte. Antônio da Costa Araújo. José Feliciano de Moraes Cid, que então comandava as tropas do Piauí, aplica-lhe terrível surra, cujas consequências protelaram seu embarque para Caxias, onde chegou nos primeiros dias de agosto.

[19] Durante a campanha, substituiu o major Antônio de Sousa Mendes no comando geral das tropas piauienses.

[20] AMARAL, José Ribeiro do. História da Revolução da Balaiada na Província do Maranhão. 3ª Parte. Maranhão: Tipografia Teixeira, 1906.

[21] Nomeado por carta imperial de 12.12.1839, em substituição a Manoel Felizardo de Souza e Mello.

[22] AMARAL, José Ribeiro do. História da Revolução da Balaiada na Província do Maranhão. 3ª Parte. Maranhão: Tipografia Teixeira, 1906. P. 64.

[23] Chronica Maranhense, 7.12.1840.

[24] AMARAL, José Ribeiro do. Op. cit. P. 85-86.

[25] Arquivo Público do Piauí. L. 195B. Doc. 21/12/1840. L. 195D. Doc. 31/12/1840. L. 193. Doc. 30/4/1841. L. 194. Docs. 23/1, 27/1, 30/1/1841 e 26/2/1841. In: NUNES, Odilon. Op. cit. P. 183 e 184. AMARAL, José Ribeiro do. História da Revolução da Balaiada na Província do Maranhão. 3ª Parte. Maranhão: Tipografia Teixeira, 1906. P. 97-98.

[26] MAGALHÃES, Domingos. A Revolta. P. 114. In: SERRA, Astolfo. A Balaiada. 3ª Ed. Parte II. Rio de Janeiro: Dedeschi, 1948. P. 198.

[27] Segundo o jornal O Guajajara, em tom de crítica, era sobrinho do “coronel Coqueiro ou Miguel dos Pombos”, a quem muito ajudou nas eleições de 1836 (O Guajajara,12.9.1840).

[28] SERRA, Astolfo. A Balaiada. Op. cit. P. 129.

[29] SERRA, Astolfo. A Balaiada. Op. cit. P. 130.

[30] In: SERRA, Astolfo. Op. cit. P. 199.

[31] A Revista, 31.10.1850.

[32] O Legalista, 17.9.1840.

[33] SERRA, Astolfo. A Balaiada. Op. cit. P. 125.

[34] SERRA, Astolfo. A Balaiada. Op. cit. P. 201 e 229.

[35] CARVALHO, Carlota. O Sertão – subsídio para a história e a geografia do Brasil. 2ª Ed. Imperatriz: Ética, 2000.