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A infinitude do alcance daquele assobio resultava, certamente, de um também enorme conhecimento metafísico da arte de assobiar, que mexesse não só com o ouvido das pessoas, mas alcançasse, de modo incisivo, a profundidade das suas almas, o recôndito canto onde cada um escondia escondia as suas coisas- essa assustadora gruta a que muitos chamam âmago do ser.
As pessoas boquiabertavam-se, incapazes dos mínimos movimentos, comentários, vivências conscientes.Num tom menos exaltado mas com a mesma capacidade hipnotizante, cada um naquela praça sentiu uma mão invisível e assobiada entrar-lhe pela boca adentro, arranhando a garganta da alma, revolvendo as mais delicadas vísceras do passado. Em verdade, era um momento quase bruto, delicadamente bruto.
KeMunuMunu, embora não fechasse os olhos, esteve munido de uma perturbadora sensação que não soube explicar a si próprio. Como se em imagens isoladas lhe surgissem capítulos da novela da sua vida. Capítulos que nunca mais tivera tempo de reviver ao ponto de os analisar com degusto. Queria mexer-se, e não podia; queria respirar muito, mas só conseguia respirar pouco. O Padre apertava os olhos, tentando esmagar as lágrimas que, vindas lá da sua alma, lhe queimavam a escura visão, o momento apagado, a quentura do toque da pálpebra de cima na pálpebra de baixo.
Kalua chegara a meio do assobio com as calças ainda por apertar, com dois ou três rolos de papel higiénico nas mãos, e, estranhamente, com algumas lágrimas num só olho. Há anos que perdera a capacidade de chorar, de se emocionar, ou até mesmo de se lembrar das coisas.