Urupês, livro de contos de Monteiro Lobato publicado em 1918.
Urupês, livro de contos de Monteiro Lobato publicado em 1918.

A resenha de Monteiro Lobato com Lima Barreto[1]

 

Décio Torres Cruz[2]

 

 

Devemos ler os autores contemporâneos, mas não devemos nos esquecer dos clássicos, nacionais e estrangeiros. Acabo de ler dois grandes livros: Urupês, de Monteiro Lobato, e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Tinha resolvido escrever sobre os livros num mesmo texto quando fui surpreendido com uma informação que une esses dois grandes escritores, e que vocês verão ao final.

Monteiro Lobato é mais conhecido pelos seus livros infantis. A ele devo muito de minha formação literária e o gosto pelos livros, pois devorei quase toda sua obra para crianças quando era pequeno. A ele também devo meu primeiro prêmio literário e minha primeira publicação, quando, aos 14 anos, ganhei o concurso “Meu personagem favorito na literatura brasileira” da Biblioteca do Ibeu-RJ, com um ensaio sobre sua grande personagem Emília.

Também devemos a Lobato sua luta pela erradicação da miséria em nosso país, pela ciência e pela soberania de nosso petróleo. Além disso, ele é, ainda, um mestre da escrita para adultos, como podemos ver em Urupês. Composto de 14 contos excelentes, eles nos revelam a maestria desse escritor. O livro surgiu de dois artigos enviados ao jornal Estado de São Paulo em 1914. Nesses contos, o autor denuncia não só os processos arcaicos das queimadas da Serra da Mantiqueira, mas também a ignorância, a exclusão, a exploração política, e a miséria dos povos caipiras, simbolizados na figura do personagem Jeca Tatu. Tudo isso com uma ironia ácida, um humor finíssimo e uma bela narração poética, como nesse trecho inicial de “A colcha de retalhos”: “- Upa! Cavalgo e parto. Por estes dias de março, a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol. A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.”

Além da poesia característica de sua narrativa, encontramos sua luta em prol da ciência e uma crítica ferrenha aos políticos aproveitadores e aos costumes arcaicos que levam ao atraso. Mas, também, encontramos o humor cáustico como no conto “O comprador de fazendas”, que foi transformado em dois filmes com o mesmo título, ambos dirigidos por Alberto Pieralisi que podem ser vistos no YouTube. O primeiro (1951), com Procópio Ferreira e Henriette Morineau, teve a música “Festa no Arraiá” composta e executada por Luiz Gonzaga especialmente para o filme. O segundo (1974), apresenta Agildo Ribeiro e Eliana Martins nos papeis principais.

Lima Barreto, com seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma, também se utiliza de ironia cáustica para traçar o panorama social de sua época e criticar, dentre outras coisas, o governo do marechal Floriano Peixoto (do qual o personagem tinha sido aliado a princípio, para depois ser encarcerado por pedir justiça no tratamento dos presos políticos) e todas as misérias da corrupção de um governo militar. O presidente é descrito como um ser estúpido, totalmente alheio às demandas do país. Apesar de abordar o espaço urbano do Rio de Janeiro, o livro também descreve o espaço rural com suas mazelas. O narrador, alter ego do autor, esmiúça os preconceitos e o racismo das classes abastadas da sociedade carioca da época, o mesmo preconceito que ele, um mulato que frequentou uma universidade composta pela burguesia branca, sentiu na própria pele, como podemos ver neste trecho: “Ele não era formado, para que meter-se em livros?” (...) “Isso de livros é bom para os sábios, para os doutores” (...) “Devia ser até proibido a quem não possuísse um título acadêmico ter livros”.

Este livro também ganhou uma adaptação fílmica intitulada Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1998), dirigida por Paulo Thiago e adaptada por Alcione Araújo. É protagonizado por Paulo José no personagem título e Othon Bastos como Floriano. O elenco conta com Giulia Gam, Ilya São Paulo, Bete Coelho e Aracy Balabanian.

A crítica social a fatos que ainda são bastante vigentes hoje assemelha-se muito àquela estabelecida por Lobato, inclusive na crítica à preguiça e indolência do homem rural. Como em Urupês, encontramos no texto de Lima Barreto o humor e a ironia, além do lirismo que caracteriza algumas de suas descrições que revelam um escritor fascinante.

Esta edição possui um estudo de Carlos Faraco, intitulado “Uma literatura afiada”, repleta de belas fotografias ilustrativas da época. Nele, Faraco nos revela que Lobato foi o único editor que investiu na publicação dos livros de Lima Barreto, pois este havia investido seu dinheiro em publicações que nunca alcançaram a devida recepção crítica que merecia, devido ao fato de ser mulato.

É importante notar que, nesta obra, Lima Barreto é um crítico feroz dos “trapos do positivismo” abraçado pelo presidente Floriano Peixoto (e, também, equivocadamente, por Lobato). Hoje, bastante criticado pelas teorias positivistas que abraçou, foi exatamente Lobato quem acreditou e investiu na força literária de Lima Barreto do mesmo modo que Lobato, através do seu narrador em A reforma da natureza, enviou para o embrião da ONU a negra Tia Nastácia junto com Dona Benta para ambas ensinarem aos governantes do mundo como este deveria ser governado após uma guerra mundial.

 

 


[1] A palavra “resenha” no título está sendo usada em seu duplo significado. Além da sua acepção tradicional de estudo crítico, os jovens a utilizam como gíria para se referir a conversa, bate-papo.

[2] Escritor, membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Autor, dentre outros, dos livros Paisagens interiores e Histórias roubadas.