[NEUZA MACHADO]


“Um personagem, todo mundo sabe o que a palavra significa. Não é um ele qualquer, anônimo e translúcido, simples sujeito da ação expressa pelo verbo. Um personagem deve ter um nome próprio, composto se possível: nome de família e prenome. Deve ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um “caráter”, um passado que tenha modelado este e aquele. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite que o leitor o julgue, que goste dele ou o odeie. É graças a esse caráter que, um dia, ele legará seu nome a um tipo humano que aguardava, seria possível dizer, a consagração desse batismo”. (Alain Robbe-Grillet)

“Pois é necessário ao mesmo tempo que o personagem seja único e que se eleve à altura de uma categoria. Precisa de muita particularidade para se tornar insubstituível, e suficiente generalidade para se tornar universal. Variando um pouco, a fim de dar uma certa impressão de liberdade, seria possível escolher um herói que parece transgredir uma dessas regras: uma criança achada, um desocupado, um louco, um homem cujo caráter incerto apronta aqui e ali uma pequena surpresa... entretanto, não haverá exageros neste caminho: é o da perdição, aquele que conduz diretamente ao romance moderno”. (Alain Robbe-Grillet)

“Pois que esta narrativa ─ paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão ─ vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era, aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais (...)”. (O Amante das Amazonas)

Mesmo compreendendo a posição despojada do criador ficcional pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, do próprio escritor de O Amante das Amazonas, a instigar o leitor ao desnudamento de sua obra ficcional, não posso deixar, servindo-me das palavras de Robbe-Grillet, de contrastar-me às palavras de Rogel Samuel. Seu personagem-narrador Ribamar de Sousa não imita os escritores amazonenses do período do auge da borracha. Esses escritores certamente imitaram Euclides da Cunha, uma vez que temporalmente ainda estavam próximos dele. O Ribamar, enquanto alter ego do narrador/ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, ultrapassa as barreiras do “semelhante” (característica de plágios mal formulados) e aventura-se no plano das invenções literárias maiores. Como narrador restrito a um determinado momento estético-social diferenciado (final do século XX), inicialmente como voz representativa do imigrante nordestino a fugir da seca e da fome intermitentes, o Ribamar de Sousa jamais poderia “imitar” o estilo ou mesmo o discurso de um narrador que se configurou nos primórdios do século XX. Mesmo que o narrador de Rogel Samuel se apropriasse de frases inteiras, explícitas, de outros escritores que se preocuparam com os assuntos da Grande Floresta Amazonense, de outros momentos estéticos do passado, ainda assim esses pensamentos já se posicionariam renovados, pois os mesmos já estariam submetidos ao imaginário de sua própria contemporaneidade. Se o texto ficcional de Rogel se revelasse como obra sem valor, como reformulações de outros textos (ficcionais ou não) de outros autores, de épocas passadas, não ofereceria espaço para uma fértil mediação crítica.


MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda da Serpente: Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel