[Galeno Amorim]

Endereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e vive na rua. Só não aceita ser mendigo. Mesmo porque ele ganha a vida vendendo pipoca e biscoito - e, todos os dias, gasta cinco reais para tomar banho e comer. Sem um teto para se abrigar, ele mora, de certo modo, no próprio local de trabalho: um carrinho de mão, construído com suas próprias mãos, que montou com uns pedaços de tábua e bugigangas encontradas no lixo.

E o que Márcio Pereira dos Santos - que, desde que deixou, há três anos, a casa dos pais, no Rio Grande do Sul, ganhou o apelido de Gaúcho - tem de diferente dos outros milhões de moradores de rua que, como ele, habitam praças e calçadas das metrópoles?

Ele lê muito, o próprio Márcio responde. E, com isso, acrescenta, ainda consegue manter alguma sanidade, em que pese toda a dureza e certa crueldade na selva de pedra das ruas para quem leva esse tipo de vida, digamos, nada convencional.

Esse rapaz de 34 anos, bem-apessoado, com título de eleitor, cartão de crédito e até conta de e-mail, lê de tudo. Jornais velhos e revistas que encontra por aí. E livros, os mais diferentes deles: sociologia, política, romances... E, naturalmente, a Bíblia, pois a vida, definitivamente, não é fácil.

Márcio gostava de ler como passatempo. Mas desde que resgatou de uma lata de lixo o livro Biblioteca de Sociologia Geral, de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar por temas sociais. Leu, releu e refletiu muito. Sobre sua vida e as suas escolhas. Descoberto, dia desses, pelo jornal O Globo nas ruas do centro do Rio de Janeiro, ele diz ter aprendido nessa vida ao léu como funcionam, para pessoas que, como ele, moram nas ruas, as políticas sociais do país.

Suas opiniões sobre a função social da leitura não ficam devendo nada a nenhum especialista:

- O livro é bom porque você confronta suas opiniões com as do autor e aprende - ele filosofa.

Além de conta bancária, carteira de identidade e conexão com a rede mundial de computadores na lan house mais próxima, Márcio dos Santos faz questão de dizer que, embora morando na rua, é um cidadão. Como qualquer outro. Foi lendo que ele descobriu, por exemplo, o que pouca gente sabe: que qualquer pessoa que esteja abaixo da linha de pobreza, como é o caso dele, tem o direito de receber ajuda do governo.

Por isso, foi lá e se cadastrou no Bolsa-Família, que recebe regularmente. Mas por que, afinal, ele ainda se dá ao trabalho de ler?! (um livro de meio quilo, que ele carrega na mochila, parece pesar horrores após alguns meses nas suas costas...).

É o próprio Márcio, leitor confesso de Monteiro Lobato, quem dá a resposta:

- O livro me faz relaxar a mente...