Professora e poetisa Marta Cortezão
Professora e poetisa Marta Cortezão

[Marta Cortezão]

Para registrar os vinte anos de morte do poeta e escritor amazonense L. Ruas, o Portal Entretextos, na pessoa do professor Dílson Lages, promoveu, no dia 04/07/2020, através do projeto Círculo Literário Virtual, um encontro intitulado Leituras compartilhadas: a poesia de L. Ruas[1]. O encontro reuniu escritores, poetas, historiadores, professores e críticos literários para falar sobre a vida e a obra do padre-poeta. Como participante, apresentei minha modesta “leitura de encantamento” sobre o tão apaixonante e poético clown de L. Ruas.

Antes, vamos saber um pouco sobre sua biografia. Luiz Augusto de Lima Ruas nasceu em Manaus, em 1931, e faleceu, também em Manaus, em 2000. Aos seus 11 anos, inicia seus estudos no seminário em Fortaleza, para logo depois dar continuidade no Rio de Janeiro; mas foi em Manaus que o Padre Ruas exerceu seu sacerdócio e também sua atividade literária: foi poeta, escritor, jornalista, professor, radialista e crítico de literatura e cinema. Ruas escreveu quatro livros, o primeiro deles, de 1958, foi Aparição do clown (poema-livro), o segundo, de 1970, é Linha d’Água (crônicas e poemas), o terceiro, de 1979, Os Graus Poéticos (ensaios) e o quarto, de 1985, Poemeu (poemas/poesias), vencedor do prêmio estadual (Amazonas) de 1970, publicado apenas 15 anos depois. Foi membro do Clube da Madrugada (1954/Manaus), formado por um grupo de intelectuais que tratava de discutir a Literatura no Amazonas e que procurava romper com “o excesso de tradicionalismo impresso e estampado nas produções” (PEREIRA:2018;114) da época, movido pelo desejo de “atualizar esteticamente as artes e as letras no Amazonas”, cujos “integrantes demonstravam uma preocupação em pesquisar e construir uma obra articulada com as manifestações” (PEREIRA:2018;115) artísticas da Semana de Arte Moderna de 1922, que avançavam por todo o território brasileiro. O ensaísta Rogel Samuel afirma que L. Ruas foi “um dos maiores poetas deste Brasil e um dos mais desconhecidos”; Mendonça  o situa, em relação ao contexto histórico-literário-brasileiro, na

 

linha de frente do modernismo amazonense, já em razão da participação no movimento madrugada, desde as primeiras horas, já pela notável contribuição expressa em sua poesia. Como ocorre com todos os verdadeiros artistas, poetas e escritores, L. Ruas deixa impresso, definitivamente, em toda a sua experiência convertida em expressão artística, o selo pessoal da identidade própria, chancela sem a qual ninguém pode aspirar à cidadania universal que as letras e as artes conferem a seus representantes.

 

E eis que sigo minha peripécia literária trazendo outra importante observação que faz Roberto Mendonça, em seu blog, a respeito da leitura da primeira obra, Aparição do clown, de L. Ruas, publicada em Manaus, em 1958, por Sérgio Cardoso Editora; depois de afirmar que a obra discorre sobre um poema crístico, ele enfatiza  

que não se trata de um poema fácil, que logo se entregue à nossa fruição. Ao contrário. Diria mesmo ser este um texto tremendamente difícil e labiríntico em seu maravilhoso hermetismo, visto que os seus vários segmentos luminosos podem, com efeito, confundir-nos (numa leitura menos atenta) e fazer-nos caminhar por seus desvios, afastando-nos, consequentemente, de seu núcleo, de seu tema fundamental, de sua significação humana e divina, assim como se, em vez da estrada real, tomássemos por atalhos que apenas nos deixassem perceber, ao longe, o rumor e as luzes da festa...

 

Entretanto, minha leitura caminha pelas veredas do “encantamento”, de diálogos que trago na bagagem de meus conflitos com a vida, das experiências, das vivências guardadas na “canoa do tempo” que singra rios e mares na distância de mundos e, no intuito de lograr tal peripécia e não me desviar da “estrada real” e/ou cair nos “atalhos”, clamo à crítica literária Lourdes Louro (20??) que conforta-me a alma de leitora empírica, quando observa que

a dialética da poesia (...) é gerada na força argumentativa e na significação que se estabelece entre leitor e texto. Também é necessário admitir que o aprofundamento da interpretação literária se dê na leitura quando os leitores são mais experientes. O texto é um grande jogo de intenções e oportuniza o leitor de experimentar sentimentos, conhecimentos, experiências ao que Umberto Eco chama de leitor empírico, porque lemos (...) com variada significação, uma vez que não há lei que determine como um texto deva ser lido e, ou interpretado.

Partindo destas observações, acima citadas, que me enchem de responsabilidade e, com base em alguns estudos literários observados, os quais serão citados no decorrer do texto, é que os apresento esta minha “leitura de encantamento”, que inicia com comentários gerais a respeito da obra em estudo, para logo passar à análise das três partes do poema por mim selecionadas: descoberta, legado e despedida. Vamos lá!   

O próprio título do livro de L. Ruas, Aparição do clown, já é um convite para um mergulho nas veredas do mistério, vez que a etimologia da palavra aparição nos remete a significados como “aparição repentina”, “fantasmagórica”, ou ainda à “epifania” que abraça os conceitos de “imaterialidade sagrada” e de “manifestação do sagrado”; por sua vez o termo clown – que aparece no título da obra e, logo em seguida, na primeira parte do poema (descoberta) e depois é retomado nas duas partes finais da obra (doutrina e despedida) e que, nas demais partes da obra, o termo dá passo ao palhaço – segundo Rodrigues, em sua dissertação Aparição do clown: de um mito racional-cristão ao nascimento da poesia,

equivale à expressão inglesa clod, que adaptada para o português, pode ser entendida como algo rústico, bronco, relacionado a terra, ao camponês. A expressão palhaço por sua vez, vem do termo italiano paglia, em português palha, material de que era feita a roupa de certo tipo de comediante, e tal comediante se desdobra em paggliaccio, um tipo de pessoa cujos argumentos não são levados a sério.

L. Ruas, em entrevista concedida ao O Jornal, em 10 de fevereiro de 1955, esclareceu que a escolha do termo clown se deveu ao caráter universal desta figura/personagem que, apesar de se relacionar com a figura do poeta, também faz referência a outros artistas, como escritores, pintores e teatrólogos e ainda acrescentou que esta obra “seria uma tentativa de exprimir o poético no homem” (que o homem redescubra a poesia em seu interior e a possa manifestar) , apesar de que um poema não é para ser explicado, mas para ser entendido (RODRIGUES:2012;10).

O livro-poema de L. Ruas, Aparição do clown (1998) está constituído por 18 partes (descoberta, discurso, resposta, aviso, romance, martírio, canção, viagem, apóstrofe, o dragão e a flor, prelúdio, coral, nênia, ressurreição do baile, retorno, legado, doutrina e despedida), as quais se complementam entre si, compondo a unidade semântica da obra; esta, por sua vez, atravessada por conceitos ideológicos cristãos, filosóficos e artísticos que se plasmam na poética dos dramas espirituais humanos através de “um discurso maduro, pleno de arquétipos e símbolos “que vão cruzar os sentimentos mais altos e mais terrenos por entre imagens escolhidas” (PEREIRA:2018;116) com o fim de canalizar importantes vozes que surgem no decorrer do poema, como o eu, o clown/palhaço e o pássaro ferido, por exemplo. André Araújo, no prefácio Interpretação do clown”, datado de 1958, que consta no livro Poesia Reunida, organizado por Mendonça, nos diz que

O milagre do destino das palavras está no mistério de seu sentido expressivo. E, no aparente obscuro dessa mística de expressão, estão a claridade dos símbolos criados e a beleza da matéria expressiva que o pensamento cria. E tudo é símbolo na vida. Quanto maior for a intimidade das forças em conflito, no homem e na humanidade, mais profundo será o mistério de cada um de nós, mais trágico será o drama da humanidade e, portanto, mais simbólica e mais mística será sua representação [...] Os conflitos, as lutas, os desesperos humanos, a ânsia pela existência, todas as forças angélicas e demoníacas, têm intimidade nos mistérios de nossos destinos.”   

É nesta linha de pensamento que se baseia minha modesta leitura da obra: a dos dramas humanos, deste homem/clown que não se sacia em si mesmo, que se busca, se frustra, se alegra, comete inúmeros erros e acertos também, se desespera, se perde, se encontra para novamente dar-se o prazer de perder-se ou descobrir-se mistério e/ou poesia, um ser inconformado por natureza em contínua peregrinação pelos caminhos do mundo e que se vê refletido naquele Prometeu acorrentado em alto penedo ou no Narciso atormentado pelo reflexo do outro/ele mesmo nas águas, como tão bem observou Rogel Samuel, em seu estudo Pássaro em voo:

A descoberta do clown é a descoberta de si. O ver-se no espelho da face do outro levanta desde logo a questão reflexa do igual, que se recolhe no lago. O corpo do outro recolhe o meu mesmo transformar-se, o seu corpo de barro, seu corpo de estrelas, entre o céu e o chão se fundem o alegre riso e o triste pranto. O tempo é de metamorfose no lago da lua, tempo mítico do luar. E a referência é da Metamorfose de Ovídio, mas com a lua cheia e o lago espelho da face onde o palhaço aparece: um anti-Narciso.

Cito aqui as três partes do poema, sobre as quais me debruçarei para continuar minha leitura:

descoberta


 

foi no tempo do luar pois não existe sol

no velho parque − tempo não maduro –

que encontrei o sempiterno clown.

queria ver-lhe a face. e sua face

era imenso lago azul parado

onde a lua se repetia. lua.

queria ver seu corpo – um chafariz

era seu corpo de barro modelado

aljofrando de estrelas e de pérolas

o céu e o chão banhados em azul.

apenas vi o velho clown beijando

uma boneca. e beijando-a chorava.

e ria ao mesmo tempo que

o destino dos palhaços é fundir

à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.

e vendo ser inútil o meu esforço

de descobrir integralmente o clown

eu suplicante lhe falei assim

 

Em descoberta, primeira parte do poema, que se trata do processo ou efeito de revelar algo, ou ainda aquela primeira experiência ou vivência; neste poema se dá o mistério, a descoberta que é uma ação comum à mentalidade humana. Aqui sucede a epifania do “ente sobrenatural”, o sempiterno e misterioso clown que não se revela em profundidade, pois o que ele revela é a existência do mistério não o mistério. Ele surge num tempo mítico, num tempo primitivo, num lugar sagrado: “foi no tempo do luar pois não existe sol/ no velho parque – no tempo não maduro –”, um tempo distante, indicado pelo verbo no passado “foi”, porém um tempo muito presente , indicado pelo verbo “existe”, e que é vivido pelo “eu” (com traços de homem arcaico-religioso, o que encontra (ou encontra-se) o (no) clown) através de um ritual sagrado, porque estes versos iniciais sugerem uma ideia cíclica que se repete no tempo e é capaz de regenerar o mundo. A figura do clown pode representar o princípio e o fim deste ritual, baseado em suas “aparições” no poema (RODRIGUES:2012;29).

Esse clown (não o palhaço), capaz de fazer uma revelação, que carrega sutilezas e possui aspectos de sacralidade, é uma das primeiras fases do ritual, da qual surgirá o palhaço, já que se entende que o clown é a colocação do mistério e o palhaço, a construção. Movido pela curiosidade, o “eu” narcísico deseja ver a face do clown, porém o que ver é apenas o reflexo de sua face no azul parado de águas, onde a lua também se refletia (repetia), talvez uma tentativa de unir um elemento celeste (lua) a um elemento terrestre (a face do outro): “queria ver-lhe a face. e sua face / era imenso lago azul parado / onde a lua se repetia. lua. / queria ver seu corpo – um chafariz / era seu corpo de barro modelado / aljofrando de estrelas e de pérolas / o céu e o chão banhados em azul”. Esse clown é a intuição do infinitamente simples, é a intuição de uma ideia. O Autor só procurou dizer uma coisa a partir desse infinitamente simples e tentou expressar essa intuição que será capaz de gerar conceitos diversos que chega a satisfação experimentada, pelo leitor, do artista poeta. Penso que a satisfação que a arte nos fornece chega ao privilégio da filosofia assim entendida a cada instante lido com o gozo nesse mero procedimento verbal.

A aparição misteriosa do ente sobrenatural surge diante do olhar passivo do “eu” em conexão com o feminino, por meio do beijo na boneca, que, para Rogel Samuel, seria “a feminidade pansexual do velho clown (que) se contagia da “boneca” que ele beija: apenas vi o velho clown beijando / uma boneca. e beijando-a chorava. / e ria ao mesmo tempo que / o destino dos palhaços é fundir / à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.”

Nos três últimos versos do poema, o “eu” assume uma posição mais distanciada daquilo que vê, mas, ao mesmo tempo desejoso de continuar com sua descoberta, ainda que seja consciente de sua fracassada tentativa: “e vendo ser inútil meu esforço / de descobrir integralmente o clown / eu suplicante lhe falei assim”, a partir daqui o “eu” se dirige ao clown através de um discurso conflitivo. Sobre este episódio final do poema descoberta, Rodrigues percebe que há

a necessidade de descoberta, de conhecimento sobre algo. O clown enquanto clown parece incapaz de conduzir à unidade, à verdade, pois, como sabemos, ele é apenas a superfície, a primeira fase do ritual ou primeiro estágio do palhaço. Assim, faz-se necessário passar à outra fase, o palhaço, onde a verdade e o possível restabelecimento da ordem, a unidade, pode se encontrar.

E a verdade continua escondida. As gradações presentes no poema “seiva, água, lama” em referência ao sangue do palhaço; “carne de elefante, néctar de bonina, alma de passarinho” revelam, no primeiro caso, a passagem de um ponto positivo a outro negativo, no segundo caso, o aspecto material ao espiritual, numa indicação de que “sangue” e “carne” do palhaço refletem uma verdade que se deseja alcançar. Os símbolos presentes no poema-livro, como a “estrela” podem significar o anúncio da vontade divina, a vida eterna dos justos e ascensão celeste; o pássaro seria a promessa de alcançar o divino, onde se encontra a verdade (RODRIGUES: 2012;40).

discurso

 

faz mistério palhaço

e ri teu riso esbandalhado.

gargalha palhaço e faz sofrer

os que contigo riem e sofrem

e vivem.

canta a tua ideologia tirânica

ó clown sentenciado

para fazer chorar os que riem.

ninguém entende tua vida mascarado

que se esconde atrás da cortina

das pinturas e das vestes.

onde está tua face palhaço onde?

além do além do horizonte

nas nuvens ou atrás da máscara?

onde está teu riso palhaço onde?

no pranto que improvisas

ou na dor que não gargalhas?

palhaço.

 

(...)
 

todos beberiam porém teu sangue

seiva das árvores água dos rios lama das sarjetas

e comeriam tua carne que não ofereces.

carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho.

 

(...)

 

tu gargalhas no palco o que choramos na vida.

embora te odiemos te amamos

pois te pareces com o menino que somos

e com o inferno que não deixamos de ser.

poeta de risos e de cabriolas

diametralmente opostas

teus trejeitos são a mais perfeita rima

que já encontrei para os poemas

que não escreverei.

somos crianças palhaço diante de ti

sou criança que não aprendi ainda

o que é o belo e o feio

o pranto e a galhofa.

o que é ser e o que é não ser.

pois tu és homem palhaço tu és homem.

clown desengraçado

 

(...)
 

 

legado


asas somente isso. angústia

de fugir ao destino das raízes.

túrgidas velas singrando aberto espaço.

velas do destino de colombo

partindo em quilhas quase loucas para

o mistério das virgens descobertas.

asas de ícaro vencidas pelo sol

incauto icaro não sabias que

não é dado a palhaços ver o sol?

ah. o vôo de icaro presente

na dança de nijinski.

asas, somente isso. desespero

de ser barro e ao mesmo tempo seta.

asas apenas sugeridas

nas curvas nos voejos nas volutas

nos mantos e nas vestes do barroco.

asas de anjos de querubins de touros

assírios. asas custódias da arca da aliança.

asas nos calcanhares de mercúrio.

asas romanas. gregas. bizantinas asas.

asas egípcias. asas de papel crepon

dos anjinhos meninas das procissões.

asas até sim asas de avião.

asas do padre bartolomeu de gusmão.

asas em queda.

pois até para cair é mister possuí-las.

belzebu tem asas. sim. belzebu tem asas.

no céu e no inferno ruído de asas tatalando.


 

asas nos pés da bailarina tola do café noturno.

antigo sonho. desejo antigo. eterna tentação.

asas. panos soltos ao vento. gazes leves.

e os braços que se erguem as mãos que gesticulam

asas as torres ogivais as fadas e as bruxas.

asas sonoras sibilando esses

verdes azuis amarelas incolores

brilhantes e opacas grandes e pequenas

das borboletas das garças das abelhas

das plumas dos polens do orvalho

asas imponderáveis e asas de granito

dos arcanjos que guardam mausoléus.

asas. geometria rude esboço mal riscado

pelos bandos erradios de pássaros selvagens.

asas no chão. asas no céu.

asas ensaiando vôo. é somente isso

o rebento verdolengo ao romper

a espessa placenta da terra dura e seca.

asas de águia em vôos altaneiros.

asas quietas pousadas em silêncio.

 

Na décima sexta parte do poema, legado, o homem aparece subordinado pela força divina, vive a sina de ser pássaro sem poder voar, pássaro-homem provido de “asas em queda. / pois até para cair é mister possuí-las”. Eis o conflito humano, embora este palhaço/homem seja um ser feito a imagem e semelhança divina, este homem carrega em sua essência algo demoníaco, pois até “belzebu tem asas. sim. belzebu tem asas. / no céu e no inferno ruído de asas tatalando.” É impossível ultrapassar o limite humano, impossível descobrir o nome do pássaro ferido. E eis que o nascimento da poesia surge em despedida, última parte do poema, onde o palhaço volta a ser clown, nela o “eu” diz: “e o velho clown partiu beijando ainda / o brinquedo que a criança abandonara / no velho palco parque ou tempo sem memória”. A narrativa cíclica retorna ao ponto de partida onde tudo começou, no tempo dos primórdios, indicando que o mito foi narrado e encenado neste mesmo “palco parque”, que pode ser o palco de nossas vidas, encenadas e protagonizadas por nós mesmos. Após o término do ritual, o equilíbrio se instala e a vida pode continuar seguindo seu curso.

despedida


e o velho clown partiu beijando ainda

o brinquedo que a criança abandonara

no velho palco parque ou tempo sem memória.

 

No decorrer da leitura fui recolhendo tesouros, pérolas na verdade, como estas: “ser livre em essência é ser cativo”, “a ilusão é mais mortífera do que a desesperança”, “tu és homem palhaço tu és homem / (...) tu és verdadeiramente homem”. Há maiores verdades que estas ditas pelo pena do poeta? Um homem verdadeiro capaz de construir sua própria existência porque é consciente de suas fortalezas, mas também de suas fraquezas, aquele homem que é corpo, mas alma também, que é farsa e também verdade, aquele Ulisses astuto, mas que erra pelo mundo em busca do caminho de volta a casa, que é razão, mas também emoção, que olha para trás, mas que também para a possibilidade desejada de um futuro. É com esta reflexão, a de ser talvez, esse “anjo caído” e, ao mesmo tempo alado, esse “Ulisses astuto”, mas errante, que busca o equilíbrio existencial, na tentativa frustrante de unir dois pólos adversos da mesma matéria, o divino e o humano, é que concluo minha “leitura de encantamento”, contextualizando com a poesia Odisseu Errante, do livro Banzeiro manso[2], de Marta Cortezão, que aborda as inquietudes pelas quais nossas vivências estão atravessadas e expostas, em viva carne, no palco da vida:

 

ODISSEU ERRANTE

 

Quando a escuridão em mim se faz,

ainda que o sol desponte radiante

perco o sono, perco o tino e a paz.

Sinto-me o Odisseu mais errante

dentre todos os mortais.
 

Cansado de astúcias e guerras,

de tantas naus e saqueios perdidos,

de tantos sonhos caídos por terra,

Odisseu de sentimentos oprimidos,

dessa grande vida procela.

 

Sem Destino, sem timão,

exilado em um submundo,

desprovido de toda ilusão,

Odisseu do Hades profundo

decrépito, de amargo coração.


Levianas juras e vãos amores

esvaíram-se tal água pelos dedos

carrego do mundo as dores

Odisseu dos tormentosos segredos,

isolado em belicosas torres.
 

Castigado pela ira netúnia

atormentado pelo abandono do lar

largado à própria sorte, à penúria.

Odisseu sem porto aonde chegar

e de grandes glórias estapafúrdias.
 

Onde perdi o poder da imortalidade?

Quando os triunfos viraram fardos?

Por que me abandonaram as divindades?

Odisseu de trêmulos e vagos passos,

por que tudo em ti é fatalidade?

 

O peso da idade me consome,

tal como ao leal amigo Argos.

Quiçá as forças não me abandonem,

quero voltar a retesar o arco,

ser Odisseu caído, mas Homem,

e reerguer-me sublime e cauto.

 

 

BIBLIOGRAFIA

CORTEZÃO, Marta B. Banzeiro Manso. Gramado (RS): Porto de Lenha Editora, 2018.

LOURO, Francisca de Lourdes. Do grego Hesíodo ao Amazônida Élson Farias: mito e realidade nas camadas populares da Amazônia. Revista Decifrar. Vol. 2, n. 4, 2014.

MENDONÇA, Roberto. Aparição do clown: intérprete. Disponível em http://catadordepapeis.blogspot.com/2016/12/aparicao-do-clown-interprete.html. Acesso em: 24/06/2020.

PEREIRA, Catarina Lemas. A literatura no Amazonas: 1954-2000 – Volume II / Org. Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira, José Benedito dos Santos, Kenedi Santos Azevedo, 1. ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018.

RODRIGUES, José Alexandre Serrão. Aparição do clown: de um mito racional-cristão ao nascimento da poesia. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Amazonas (UFAM), 2012.

RUAS, L. Aparição do clown. Manaus: Valer Editora, 1998.

RUAS, L. Poesia Reunida. Org. Roberto Mendonça. Editora Travessia, 2013.

SAMUEL, Rogel. Pássaro em voo. Disponível em https://portalentretextos.com.br/post/rogel-samuel-passaro-em-voo. Acesso em 24/06/2020.

 

 


[1] https://www.youtube.com/watch?v=iEGXY_e9zdc

[2] http://portodelenha.com.br/