[Heloisa Amaral]

Com frequência, ouvimos comentários do tipo “Esse menino lê, mas não compreende.”. Geralmente, esses comentários estão associados àqueles que leem decifrando, sílaba por sílaba ou, às vezes, letra por letra, para depois juntá-las. A cada palavra duramente conquistada na decifração, porém, o leitor não fluente não se apropria do sentido que ela tem no texto do qual faz parte.  É uma relação penosa entre leitor e o lido.

Antônio Batista[1] e outros pesquisadores estudiosos do assunto têm desenvolvido importantes reflexões sobre a relação entre fluência em leitura – ou ler de forma “corrida” – e leitura com compreensão.  Para eles, a alfabetização eficiente depende do trabalho com fluência em leitura, capacidade esta intimamente relacionada com a consciência fonológica.  E a alfabetização de qualidade depende do professor. Mas, se a alfabetização é o primeiro passo na conquista da competência leitora, responsabilidade do professor das séries iniciais, a fluência em leitura se consolida com a participação do professor de todas as demais disciplinas, desde que ele leia para/com sua turma.

Fluência é elemento necessário para a compreensão leitora

Para ensinar a ler com fluência em leitura, o professor precisará desenvolver estratégias de ensino específicas. Uma delas é tornar-se modelo de leitura fluente em todas as aulas, não só nas de Língua Portuguesa. É preciso atuar dessa mesma forma nas demais disciplinas, o que permitirá que eles avancem no domínio dos campos de conhecimento diversos que a escola deve oferecer.

Assim, o professor deverá ler para os alunos – e com eles – poemas, narrativas, textos jornalísticos, receitas, enunciados de Matemática, biografias, textos de História, Geografia ou Ciências. O ensino de leitura, como se vê, não é esgotado pelas atividades de Língua Portuguesa.

Atividades de leitura diária compartilhada são fundamentais para que o modelo de leitor fluente dado pelo professor seja apropriado pelo aluno. Nesses momentos, o professor deverá ler fluentemente todos esses textos, dar a entoação adequada a cada um deles, fazer as pausas necessárias, respeitando a pontuação típica de cada gênero enquanto lê. Se estiver lendo uma notícia, sua leitura terá o tom próprio dos noticiários, diferente daquele que dará quando estiver lendo uma narrativa, ou uma receita culinária, ou um problema de Matemática.

Para ensinar leitura, o professor precisará preparar tudo que vai ler com antecipação, como faz um ator quando ensaia para apresentar uma peça. É ele que “dará o tom” que garante que o leitor ainda não fluente compreenda o que está sendo lido e aprenda ritmos e pausas presentes em diferentes gêneros textuais.

Compõem o trabalho do professor no ensino da fluência, além de ser modelo de leitura, dois outros elementos importantes:

O domínio do sistema alfabético/ortográfico;

O desenvolvimento da consciência fonológica, isto é, a clara percepção dos fonemas que estão presentes na formação das palavras.

Domínio da ortografia a partir do ensino explícito do sistema alfabético/ortográfico

Para que o aluno tenha consciência fonológica, é preciso que o ensino do sistema alfabético/ortográfico seja aberto, explícito desde o início do Fundamental I. Ou seja, não é necessário aguardar que o aluno construa hipóteses pré-silábica, silábica e alfabética para avançar no ensino da leitura e da escrita.

O levantamento de hipóteses prévias a qualquer conhecimento surge da necessidade de compreender o que nos cerca. Como não são todas as crianças que têm contato suficiente com experiências significativas de leitura e escrita dos adultos com quem convive e não são instigadas por eles a interessar-se por ler e escrever, não há razão para que levantem hipóteses sobre esses assuntos.

Ao refletir sobre condições sociais e leitura, é preciso considerar que nem sempre adultos não leitores deixam de estimular suas crianças. Por exemplo, adultos que frequentam igrejas onde a leitura da Bíblia é ação central e importante, tendem a incentivar suas crianças a aprender ler. O mesmo pode acontecer com aqueles adultos que, mesmo nãos sendo leitores, identificam a falta de domínio da leitura como uma razão para a exclusão social. Por outro lado, grupos sociais para os quais as escrita não teve, historicamente, relevância para a obtenção do sustento, algumas vezes compreender textos escritos pode não ser objeto de interesse maior e nem de necessidade.

Quando a obtenção do sustento é associada à força física e à destreza no manejo de instrumentos e ferramentas, como ocorria, por exemplo, nas práticas agrícolas vigentes há poucas décadas, a valorização da escrita no ambiente doméstico pode não ocorrer. Isso se agrava quando as crianças são do sexo masculino e a “cultura masculina” da qual participam está associada a esses valores. Nesse caso, a aproximação da escrita por meio de textos escritos que remetem a brincadeiras associadas ao universo feminino, como as de roda e as parlendas, em vez de funcionarem como elemento que instiga a apropriação do sistema alfabético/ortográfico, pode ser desestimulante. Tal situação pode ser um dos fatores que levam os meninos a constituírem cerca de 70% do universo dos alunos com defasagem idade/série.

Se a escola não ensinar leitura e escrita de forma aberta e sistematizada para as crianças que não tiveram modelos de leitura e escrita nos ambientes domésticos, elas terão mais dificuldade – e até, por vezes, impossibilidade – de apropriar-se da base alfabética.

Assim, o ensino explícito do sistema alfabético/ortográfico, longe de constituir um elemento de “mecanização” da aprendizagem, torna-se, juntamente com o desenvolvimento da consciência fonológica, um elemento base para que o ensino reflexivo de leitura e escrita tenha sucesso. O sucesso inicial do aprendiz no domínio da base alfabética é um incentivo para que, a partir dessa conquista, ele desenvolva continuamente seu universo leitor.

A Consciência fonológica

Consciência fonológica é a capacidade que nos permite perceber que aquilo que dizemos ou lemos – independente do significado – pode ser segmentado em frases e palavras, as palavras em sílabas e as sílabas em fonemas. É também por meio da consciência fonológica que compreendemos que essas unidades podem se repetir em diferentes palavras.

As crianças desenvolvem progressivamente a consciência fonológica. Uma dos indícios que indicam o início desse desenvolvimento é o prazer que demonstram quando ainda bem pequenas em ouvir histórias rimadas ou canções de ninar com rimas.

Na escola, ao ensinar alfabetização em qualquer faixa etária, é indispensável instruir continuamente sobre os aspectos fonêmicos das palavras, demonstrando as relações que há entre letras e sons. Em outras palavras, na retomada da alfabetização que farão com seus alunos, será preciso analisar constantemente as palavras, sílabas e rimas não só pelas letras, mas também pelos fonemas que as compõem.

O processo de ensino/aprendizagem, neste caso, envolve capacidades cognitivas de análise e síntese. Para que os alunos compreendam o processo, o professor orienta a segmentação das palavras em letras/fonemas e sílabas para em seguida juntá-las.

A consolidação dessa aprendizagem exige que o professor seja novamente o modelo, fazendo constantes análises grafo/fonêmicas das palavras presentes nos exercícios, pronunciando os diferentes fonemas ao indicar as letras que os representam.

O exercício constante de análise/síntese de palavras também tem como objetivo a memorização de palavras, sílabas e grafemas (letras) e fonemas (sons). Memorizar os elementos constitutivos da palavra torna os processos de articulação mais rápidos e eficientes. Dessa maneira, os alunos tornam-se conscientes dos processos grafo/fonêmicos envolvidos na leitura e podem monitorá-los, assim como podem identificar grafemas correspondentes na escrita e desenvolver procedimentos conscientes de revisão.

Níveis de fluência em leitura[2]

Você poderá avaliar a fluência em leitura de seus alunos e, a partir deles, identificar os níveis em que estão para auxiliá-los a progredir em sua capacidade. Veja quais são os níveis de fluência, do mais alto para o mais baixo. O nível 7 corresponde ao grau de fluência em leitura desejável para o final de fundamental I.

 

Nível 7

O aluno lê textos desconhecidos de gêneros conhecidos com tom de voz e expressividade adequados, embora faça algumas regressões em leitura de palavras desconhecidas, sem desvirtuar a estrutura do texto lido e preservando a sintaxe do autor.

Nível 6 

O aluno usa o tom de voz e a expressividade adequados ao ler trechos conhecidos de diferentes gêneros, embora faça algumas regressões em leitura de palavras desconhecidas, sem desvirtuar a estrutura do texto lido e preservando a sintaxe do autor.

Nível 5

Lê primordialmente por meio de grupos mais ampliados de frases com sentido. Embora algumas regressões, repetições e desvios do texto possam estar presentes, eles não parecem desvirtuar a estrutura da história. A preservação da sintaxe do autor é consistente. A maior parte da história ou alguma parte dela é lida com interpretação expressiva.

Nível 4

Lê primordialmente por meio de grupos de três ou quatro palavras. Alguns grupos menores podem estar presentes. Entretanto, a maior parte das sentenças é lida de modo apropriado e com a sintaxe do autor preservada. A leitura expressiva é pequena ou não está presente.

Nível 3

Lê principalmente por meio de grupos de compostos de duas palavras, mas grupos com três ou quatro palavras podem também estar presentes. A leitura palavra-por-palavra pode também ocasionalmente ocorrer. Agrupamentos de palavras podem soar de modo estranho e sem relação com contexto mais amplo da sentença ou da passagem.

Nível 2

Lê principalmente palavra-por-palavra. Ocasionalmente, a leitura de grupos de duas ou três palavras pode acontecer, mas ela é infrequente e/ou nela o sentido não é preservado.

Nível 1

Começa a identificar, em palavras, a ocorrência de sílabas. Usa o conhecimento das sílabas para decifrar palavras desconhecidas. Lê palavras principalmente de sílaba a sílaba, para depois juntá-las, retornando à palavra.

Nível 0

Começa a identificar, em palavras, a relação fonema/grafema.

Avaliar os níveis de fluência em leitura de uma turma é uma providência necessária para a tomada de decisão sobre a qualidade e a quantidade de instrução fonêmica que o professor dará e sobre momentos em que devem trabalhar em dupla, com pares avançados auxiliando os colegas.

Veja, no link abaixo, exemplos de atividades diagnósticas conduzidas por profissionais do Cenpec[3], Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.

Esses exemplos de investigação sobre a constituição da fluência são preciosos para a elaboração de instrumentos para a avaliação diagnóstica em leitura. E essa avaliação é imprescindível para as intervenções adequadas para que o processo de constituição da fluência ao ler aconteça na escola de modo progressivo e sólido.

São Paulo, 12 de outubro de 2014

[1]  file:///C:/Users/heloama/Downloads/3.1_artigo_mec_alfabetizacao_dute%20(1).pdf

[2] KUHN, R. Melanie; RASINSKI, Timothy. Best practices in fluency instruction. In: GAMBRELL, Linda B. et al. Best Practices in Literacy Instruction. New York: The Guilford Press, 2007. p.214. Tradução: Batista, A.A. Gomes. Adaptação da tradução com a colaboração de professoras do GD de Língua Portuguesa,  Cenpec, 2012.

 [3] http://gdlinguaportuguesa.wordpress.com/category/atividades-diagnosticas/

 [4]Foto: Biblioteca Pública Arthur Vianna.Localizada no Estado do Pará.Tirada por Meibe Mascarehas no dia 12/08/04.