Gonçalo Alvarez: – Não há homem en toda esta terra, 

que conheça estes, que diga outra cousa. 

Eu tive hum negro, que criei de pequeno, 

cuidei que hera boom christão e fugiu-me pera os seus: 

pois quando aquelle não foi boom, não sei quem o seja.

Livro 'Diálogos Sobre a Conversão do Gentio"  

de Padre Manuel da Nóbrega

 

Ouviu o diálogo sem voz

Fugiu, abafado pelas conversas

Conversões e imposições.

E minha voz sobre ele vaza,

Nada se pode dizer por ele.

Sua voz sempre escapará:

Desceu as águas do Juruá?

Se banhou no Tapajós?

Viu os seus nas margens do Japurá?

E minha voz vaza, desliza, embarga.

 

Não se ouve uma palavra

Mudo na cena se vê o indígena

Exilado na sua terra sem voz

Cortado por palavras de mandamentos:

mandados, mandos, comandos

De decálogos em pedras fundados

Pedras que, antes de tudo, soterram pedras.

Palavras que, antes de tudo, calam palavras.

E minha voz vaza, desliza, embarga.

 

(Mas agora, Gonçalo, lhe direi diretamente:

Minha voz embarga 

Por ouvir a tua voz  

Tão exposta, tão orgulhosa 

De tuas manobras de pregador.

Mais do que isso

Minha voz embarga por não ouvir

A voz do outro que fugiu de tuas malhas

De tuas pregações que pregam teus pregos.

 

Gonçalo, de quem o retiraste pra criar?

De quem o arrancaste pra dobrá-lo aos teus verbos?

Tenho pra mim que ele fugiu de teu Cristo

Quem é Cristo senão mais um entre os deuses?

Não seria ele um deus mais jovem que Tupã?

 

Não o ouço, não posso ouvir a voz do outro.

Por que ele fugiu, Gonçalo?

Porque não era bom cristão!?

Ora, vejam como um pregador executa.

Onde estão as palavras do fugitivo?

Não estão escritas. Não podem ser lidas.

Se podem ler teus lamentos, teus desejos

E tuas vaidades de bondades.

 

O que se lê de tuas palavras são dedos

Que cavam pra depositar palavras sob a terra.

Linhas nobres de Nóbrega

Ares de grandezas

Linhas hipócritas de pregador

Virtudes nas sombras da conversão.

 

Muitos pensarão que sou audacioso por dizer assim

Ora, ora! Querem que eu não leia o que não está escrito?!)

 

Minha voz se abriu perante as palavras de Gonçalo.

Mas ela ainda vaza, desliza, embarga.

A voz do outro sempre escapará:

Desceu as águas do Juruá?

Se banhou no Tapajós?

Viu os seus nas margens do Japurá?

 

 * Mantive na epígrafe o português original do texto.

 * Os colonizadores portugueses usavam o vocábulo 'negro' para se referir aos indígenas. 

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