[Heloisa Amaral - Helô]

“Ler é melhor que estudar”. Esta é uma opinião quase unânime e compartilhada pela população letrada e pertencente às elites intelectuais brasileiras: intelectuais, professores do ensino fundamental, médio e universitário, jornalistas, comunicadores da mídia. No entanto, a maior parcela de nossa população, embora hoje possa estudar, não chega a ler. A escolarização, no caso da sociedade brasileira, não leva à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, às vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das elites, no início de um novo milênio.” Roxane Rojo (1)

A citação do artigo de Rojo, acima, oferece questionamentos para esta reflexão: será que estudar é ler? Será que ler para estudar é pior do que ler para fruir os prazeres da literatura?Acreditamos, assim como Rojo, que a leitura  pode ser sempre um ato prazeroso, independente de suas finalidades explícitas. Pensamos, também, que as atividades de leitura, se bem orientadas, podem contribuir para que as escolas atuem com eficácia sobre o desenvolvimento das capacidades leitoras dos alunos.

Leitores podem ampliar continuamente suas capacidades para ler. De um lado, podem aumentar o número delas; de outro, podem aperfeiçoá-las, como instrumentistas que, já considerados virtuoses da música, estudam e estudam horas a fio, buscando um refinamento de sua relação com a arte. Assim como o instrumentista, o leitor precisa, ao mesmo tempo, de gosto pelo ato de ler e de domínio sobre diferentes capacidades de leitura para, com prazer e proveito, mergulhar no conhecimento oferecido por diferentes gêneros de texto. Bem provido dessas capacidades, ele poderá fruir não somente a literatura (como arte ou como entretenimento), mas também gêneros provenientes das mais diversas áreas do conhecimento.

Assim, transformar o ato de “ler para aprender” (ou ler para ampliar seu universo de conhecimento) em instrumento de fruição depende da ampliação das capacidades do leitor. E é evidente que a escola é um espaço privilegiado para o desenvolvimento dessas capacidades, mas, nem sempre ela tem desenvolvido estratégias para tornar inseparáveis “ler por prazer” de “ler para aprender”. Um exemplo é a separação mais do que conhecida: nas aulas de Língua Portuguesa, lê-se literatura e poesia; nas demais, textos ligados a cada área de conhecimento. A leitura, em Língua Portuguesa, merece relevo, deve ter espaço determinado para aprendizagem e bem ou mal é avaliada. Nas demais, costuma ser encarada como uma capacidade que deve vir pronta das aulas de português, ou mais estranhamente ainda, das aulas de alfabetização. O trabalho com leitura (e escrita) nos gêneros próprios das diferentes áreas não parece ser da responsabilidade dos demais professores.

Ocorre que a pesquisa escolar, na maioria das vezes, é determinada por professores que não são, por características próprias de suas áreas de formação, especialistas em leitura. Isso dificulta a apropriação de conhecimentos especializados pelos alunos, já que a leitura é o instrumento mais usado para estudar conteúdos e ampliá-los por meio da pesquisa em textos escritos. Por outro lado, os especialistas em leitura não costumam dominar os conhecimentos necessários para a compreensão ativa dos temas dos gêneros não literários.

Essa distância entre os professores de Língua Portuguesa e os demais só pode ser atenuada se houver um intercâmbio de conhecimentos, favorecido por planejamento escolar comum. a desejada ampliação das capacidades de leitura dirigidas aos mais diferentes gêneros de texto, com a discussão prévia sobre as capacidades de leitura envolvidas. Dessa maneira, a discussão sobre temas atuais e envolventes pode beneficiar a aprendizagem de todas as disciplinas envolvidas e tornar o ato de ler gêneros textuais não literários um ato de prazer.

A pergunta abaixo pode servir de guia para a discussão entre os professores envolvidos em trabalho interdisciplinar:

Que capacidades de leitura precisam ser mobilizadas quando lemos para aprender?

O trabalho com as capacidades de leitura (desde que sejam entendidas por todos) pode ser equitativamente distribuído entre os professores do grupo. Vejamos algumas delas:

1. Leitura como uma situação efetiva de interlocução

A leitura precisa ser entendida, pelo leitor e por professores, não como palavras de outro que ecoam, sem sentido, quando decifradas a partir de um “amontoado de letras”. Nesse caso, as palavras “batem e voltam” e continuam ignoradas. Ela deve ser entendida como diálogo entre o universo de conhecimento do leitor e o texto que lê. Para contribuir com a construção de significados, os textos indicados para leitura precisam ter um “guia de conceitos” que explique os sentidos próprios que as palavras adquirem em cada área de conhecimento, de forma próxima ao que o aluno conhece.

2. Ativação de conhecimentos de mundo (associados à pesquisa que será feita)

Os conhecimentos relativos ao tema da pesquisa precisam ser previamente ativados para que a leitura ganhe significado. O aluno precisa ser preparado, previamente, para entender os conceitos que lerá. Se o aluno for incentivado a pesquisar para ampliar o conceito de, digamos, “figuras de linguagem”, ele precisa ter um entendimento mínimo do que isso significa. O mesmo ocorre com temas de outras áreas, muitas vezes assumidos individualmente pelo professor de Língua Portuguesa, quando parte da necessidade de estudar um determinado gênero, por exemplo, artigo de opinião.

3. Definição, para o aluno, das finalidades das atividades de leitura

No caso, ler para pesquisar informações a partir de questões focadas em problemas específicos que a pesquisa quer resolver, em textos de diferentes gêneros, como artigos de opinião, ensaios, artigos acadêmicos didatizados, mapas, gráficos etc.

4. Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades dos textos (de acordo com os gêneros indicados em 3)

Exploração de hipóteses sobre o conteúdo a ser pesquisado a partir de títulos, temas e subtemas abordados, de intertextualidades possíveis etc.

5. Recuperação do contexto de produção do texto (no caso, de gêneros indicados em 3)

Discussão, com os alunos, sobre a origem dos textos que serão lidos: são da esfera jornalística? Da acadêmica? São verbetes de enciclopédia? Mapas? Em cada caso, qual é seu contexto de produção? Como o contexto de produção marca, linguisticamente, os textos que serão lidos?

Organizar um trabalho interdisciplinar exige planejamento prévio dos professores envolvidos e, em alguns casos, da própria direção da escola. Uma forma prática de realizar isso é construir alguns instrumentos de apoio, como a ficha sugerida a seguir.

Tema geral da pesquisa (por exemplo, a violência)
Professor de Língua Portuguesa Professor de História, Filosofia ou Sociologia, ou todos Todos os professores Alunos responsáveis
Demonstração de atos de leitura como interlocução Ativação de conhecimentos de mundo: discussão sobre o tema e definição do foco da pesquisa para a turma, no caso “O conceito de violência através dos tempos” Todos.
Definição, para o aluno, das finalidades e meios para as atividades de leitura (no caso, ler para pesquisar em diferentes gêneros: artigos, ensaios, textos de livros didáticos, verbetes de enciclopédia, gráficos, mapas etc.) Definição da questão geral da pesquisa:

 

A violência tem sido entendida, da mesma forma, através dos tempos?

Definição de fontes para pesquisa Todos.
Definição de subtemas de pesquisa:
A:
1. Violência contra a criança
2. Violência no trabalho
3. Violência na escola
4. Violência contra grupos socialmente discriminados: 4.1 – mulheres; 4.2 – afrodescendentes; 4.3 – homossexuais.
5. Etc.B: esclarecimento sobre os conceitos básicos
Acompanhamento dos grupos, conforme combinação entre os professores responsáveis pelo trabalho interdisciplinar Grupos de alunos, cada um responsável por um subtema.
Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades dos textos (de acordo com os gêneros indicados em 3. – demonstrar que há diferenças entre eles por meio de leituras de exemplares de cada gênero) Questões específicas – Como eram:
1. a) relações adultos/criança na Idade Antiga1. b) relações adultos/criança na Idade Média1. c) relações adultos/criança na Idade Moderna

 

1. d) relações adultos/criança até meados do século XX

1. e) O que, atualmente, é considerado ato de violência contra a criança?

Definição dos textos a serem lidos (escolher mais de um gênero para leitura) Grupos de alunos responsáveis pelo primeiro subtema.
Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades dos textos (de acordo com os gêneros indicados em 3. – demonstrar que há diferenças entre eles por meio de leituras de exemplares de cada gênero) Indicação de fontes de pesquisa na internet e outras fontes, focadas no tema geral. Todos.
Recuperação do contexto de produção do texto (no caso, de textos dos gêneros que podem trazer informações, como artigos acadêmicos didatizados, ensaios, artigos de opinião, verbetes etc.) Indicação de fontes de pesquisa de acordo com os subtemas Cada grupo em particular

Citação de Rojo, em  – Letramento e capacidades de leitura para a cidadania.

A

Publicado inicialmente no site do Escrevendo o Futuro, em 29|04|2009